A magia do cavaquinho num quarteto de cordas

A apresentação do disco Cavaquinho.pt no CCB, na noite de 28 de Fevereiro, foi exemplar: Júlio Pereira, os músicos e restante equipa deram vida a um óptimo espectáculo.

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Júlio Pereira fotografado para o disco Cavaquinho.pt António Gamito

O cavaquinho pode ser um instrumento limitado, no tamanho, no som e nas cordas, mas com arte ele pode transformar-se numa voz maior, desafiadora e cativante. Júlio Pereira, que lhe dedicou um disco em 1981 (disco que fez muita gente aproximar-se deste pequeno tetracórdio) e em 2014 repetiu a façanha, com maior ambição e mais três décadas de experiência em cima, já mostrou que isso é possível.

Mas o facto de ter, nos concertos dos últimos meses, “dispensado” dos palcos a voz humana e arriscado uma formação em quarteto de cordas, tornou ainda mais aliciante o desafio. Depois de vários concertos de salas cheias (Coimbra, Sines, Marinha Grande, Évora), o espectáculo que praticamente encheu a plateia do Grande Auditório do CCB na última noite de Fevereiro revelou-se um exercício de prazer musical e bom gosto, com o cavaquinho a dialogar de forma conseguida e interessante com o violoncelo (a cargo de Sandra Martins), mantendo, como vinha sendo hábito, o bouzuki (Luís Peixoto) e a viola acústica (Miguel Veras) como suportes seguros nas malhas rítmica e harmónica dos temas.

Essencialmente instrumental, embora Júlio Pereira tenha recorrido a vocalizos num par de temas, o concerto fluiu com leveza num rumo equilibrado e feliz, com o som de sala e a iluminação a ajudarem a compor um todo quase perfeito. Nos temas, o novo disco foi a principal fonte, mas não a única. Júlio apresentou temas com endereços que eram também saudações (Ler Devagar, Museu do Fado) e, quase logo de início, lembrou José Afonso, com quem tocou muitos anos e com quem aprendeu, disse ele, entre outras coisas, que “em sociedade, tudo o que fazemos tem de ter sentido”. Lembrou, a propósito, uma história exemplificativa da personalidade curiosa e inquieta do compositor. Um dia, José Afonso tocou-lhe à porta e perguntou: “Não queres ir à Gulbenkian ouvir free-jazz?” Era assim, aberto a várias artes e às suas novidades. Como era aberto à sociedade e aos seus dilemas. Os índios da Meia Praia, tema de que Júlio Pereira apresentou no CCB uma versão livre e inspirada, é disso exemplo.

Dali passou, depois, à Dança do ponteiros (do álbum Acústico, de 1994) e a Larantxa, uma criação galega airosa para a mesma música com que em Portugal se cantava (e ainda canta) a Triste viuvinha. Depois vieram Malhão morno (com a cabo-verdiana Sodade pelo meio), Peixinhos do mar (tema tradicional brasileiro que Milton Nascimento gravou no início dos anos 80, projectando-o na ribalta e aqui tocado com quatro cavaquinhos, o que lhe deu uma fragilidade quase infantil) e, por fim, um tema dedicado ao Alentejo (e falou da classificação do “cante” pela Unesco, como já havia sido o fado).

Depois, quase no final, três ambiências bem diferentes: a de Celtibera, do disco Os Sete Instrumentos, 1987 (“tema que fiz há 530 anos”, ironizou Júlio), que originalmente era com bombos do Minho, mas que na ausência de bombos teve no CCB palmas a compasso; uma versão digna de mais aplausos de Senhora do Almortão; e, por fim, o tema Quadriga Lisboa, do novo disco, que Júlio disse ser “um misto entre modas de Lisboa e filmes de cowboys”.

Aplaudido de pé, no final, Júlio Pereira e os restantes músicos ainda voltariam para mais dois temas: Terra do Bravo, moda açoriana que ele gravara no disco Cavaquinho de 1981; e, num novo e último regresso ao palco, Pulga saltitante, o tema de abertura do novo disco, o Cavaquinho.pt do século XXI.

Com uma ambiência estética de quarteto de cordas e a fogosidade da alma popular portuguesa, este novo espectáculo de Júlio Pereira é daqueles que têm o louvável mérito de perdurar na memória. Os que a ele assistiram, com satisfação evidente, poderão confirmar que assim é.

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