O génio é a sua maldição

Como é que os músicos vêem D'Angelo? Extraordinário vocalista, exímio compositor, conhecedor dos clássicos, inventivo, com bom gosto e muito coração. Mas acima de tudo, um clássico que os tocou profundamente.

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A maior parte dos músicos que mantêm uma relação intensa com a obra D'Angelo conclui o mesmo: quando surgiu podia até parecer novidade, mas D'Angelo é um clássico – e Black Messiah não os desiludiu GREGORY HARRIS

“No final dos anos 1990”, ainda a fadista Ana Moura não era a fadista Ana Moura – o seu disco de estreia, Guarda-me A Vida Na Mão, só surgiu em 2003 –, “depar[ou-se] com a sonoridade” de um estreante chamado D'Angelo. “Identifiquei-me logo com aquela nova soul”, diz. “Toda a vida tinha ouvido e admirado os grandes artistas da soul”, de Marvin Gaye a Otis Redding, passando por Sam Cooke. E ali estava um da mesma igualha. No passado fim-de-semana, Ana foi a Londres vê-lo: “Adorei”, exclama.

São muitos os músicos que mantêm uma relação intensa com a obra D'Angelo. Tendo idades diferentes, trabalhando em géneros distantes, descobriram D'Angelo em momentos e de maneiras diferentes, escolhem como preferido discos diferentes, apesar de Voodoo, de 1999, ser o mais citado, mas acabam todos por destacar a sua voz e a sua tremenda capacidade de criar melodias. A maior parte conclui o mesmo: quando surgiu podia até parecer novidade, mas D'Angelo é um clássico – e Black Messiah não os desiludiu.

Carlão, isto é, Carlos Nobre, conhecido por Pacman quando era o MC de serviço nos Da Weasel apanhou-o “mesmo do primeiro disco”. “Foi na altura do primeiro disco da Erykah Badu”, recorda, e havia uma série de artistas a fazerem um som semelhante “a que chamaram nu-soul”, rótulo que segundo Carlão “caiu em desuso”.

Na altura Carlão “escrevia para o Blitz e fazia umas coisas na rádio e as editoras mandavam discos” e foi assim que o descobriu – aquilo a que chama o método clássico, antes dos mp3. Com Voodoo Nobre manteve “uma relação altamente emocional”. Ainda assim, e apesar de já ser fã, “quando o disco saiu” o clique “não foi imediato”. “Lembro-me que as pessoas diziam 'O que é isto?'. Depois, passado um mês ou dois, não largas mais o disco”.

Não podia ser mais oposta a relação de Tiago Miranda, ex-Loosers e DJ no LUX. Não se recorda “se ouvi[u]” Brown Sugar, o disco de estreia, de 1995, “numa loja ou na rádio”, mas sabe que “foi imediato” e pensou “Isto é muito bom, tenho de comprar este disco”.

Se Carlão se fascinara com “um gajo com muito talento e de 19 anos a tocar piano, cantar e fazer uma soul para a qual na altura ninguém estava virado”, Miranda não sabia nada sobre a personagem: “Ao início pensava que ele era um cantor. Porque sempre tive a impressão que estes gajos não escreviam as canções. E achava genial na mesma, não diminuía em nada o meu gosto pelo disco”. Ou seja: nem sempre o contexto determina a nossa relação com um músico. Às vezes é simplesmente a música que nos toca.

Mais tarde Miranda apercebeu-se “que o gajo fazia quase tudo” e “aí sim, fiquei fascinado”. Note-se que quando Tiago descobriu a multiplicidade de capacidades de D'Angelo, “já o gajo não estava a fazer música nenhuma e não havia informação sobre ele – nem sabia que ele estava agarrado às drogas”. Selma partilha do fascínio: para ela, D'Angelo é “um artista completíssimo, com uma voz incrível , uma presença impecável, com um gosto admirável na fusão de géneros musicais tão particulares, que arranja, escreve, compõe, produz”.

A idade faz diferença na forma como chegamos aos objectos – Joaquim Albergaria, que é um pouco mais novo que Carlão e Miranda não ouviu pela primeira vez D'Angelo, viu-o. “Na TV, o vídeo da Untitled (how does it feel) parecia desacelerar o tempo”, recorda. Albergaria não conseguiu libertar-se daquele falsete, “herdeiro do Marvin Gaye e do Prince” mas “a acrescentar algo mais ao legado, que [D'Angelo] sabia de cor e coração”. Quando Albergaria ouviu o seu primeiro D'Angelo, que foi Voodoo, fê-lo “em repeat”. “À primeira escuta senti-me analfabeto”. Dificilmente se pode ser mais sincero: “Não sabia que a música podia ser assim. Havia qualquer coisa de intrinsecamente cru e dorido e ao mesmo tempo e de igual forma, sofisticado e suave.

Quem também sentiu “amor à primeira vista” foi a cantora Selma Uamusse, que começou a ouvir D'Angelo em 1997 por “incentivo de um namorado apaixonado pela neo-soul e ouvíamos os discos em repeat”. Vivam os ex-namorados: nessa altura, a aparelhagem de Selma “alternava o Baduizm da Erykah Badu e o Brown Sugar”, de modo que o seu ouvido “estava muito condicionado a beber tudo o que fosse nu-soul”. D'Angelo era o rei, a Erykah a rainha e pelo meio “havia sempre lugar para Angie Stone, Bilal, JDilla, Raphael Saadiq.”

A soul é estar despido
Mas qual a razão de todo este amor? Sendo cantora, Selma destaca a voz, claro – coisa que todos o fazem. Mas Angel Deradoorian (ex-Dirty Projectors, actualmente faz parte do trio Slasher Flicks, no qual se inclui Avey Tare e actua a solo como Deradoorian), realça um ponto importante: “Ele tem bom gosto. É subtil e usa apenas o que é certo para cada canção. Não sente necessidade de mostrar todo o seu talento a todo o momento. Cada inflexão vocal é pensada e bem colocada, o que aumenta o prazer de ouvir o seu canto doce”.

Deradoorian admira “a profundidade artística de D'Angelo, o seu medo e a sua intrepidez”, o que parece, mas não é, uma contradição. Carlão também toca na questão da “profundidade”, usualmente associada às palavras que se cantam – ou como se cantam as palavras. “Há um lado genuíno e super-emotivo nele”, começa, antes de proceder a um pequeno raciocínio lógico: “Há gajos que são pirosos a falar de emoções e outros que são genuínos e mesmo que rocem o piroso aquilo é muito bom”. Dá exemplos: “Há temas do R Kelly que até gosto mas aquilo é meio piroso e para mim torna-se um guilty pleasure. Há outros gajos que se calhar estão a ser genuínos e acabam por soar azeiteiros”. Tudo isto para chegar aqui: “O Marvin Gaye sempre esteve na linha entre o genial e o piroso – e o D'Angelo também”.

Carlão e Albergaria têm um fascínio pelo vídeo de Untitled – Deradoorian também. “Talvez o tenha ouvido na rádio antes, mas eu era nova e não me recordo disso. [Do que me lembro descobri-o] com o vídeo para Untitled (How Does It Feel), que é inesquecível”. Carlão acredita que esse vídeo “sintetiza o que é a soul”. Tentem recordar-se, como Carlão o faz: “Ele todo nu em frente a uma câmara, e aquilo para mim é soul: um gajo despido. A soul é isso: estar despido, sem roupa, sem truques, sem artifícios, sem outra coisa que a voz e a verdade”. Também é possível assistir a D'Angelo e ceder aos instintos: Selma não consegue deixar de realçar “a belíssima figura e a voz quente”.

Clássico, clássico, clássico: todos usam esta palavra. Para Tiago Miranda D'Angelo “é um clássico”, “por causa das melodias”. Ana Moura conta que Untitled (How Does It Feel) a fez “reviver os eternos clássicos. Parecia que aquelas canções frescas também já eram clássicos! Porém, com uma nova roupagem adaptada aos tempos mais modernos”. E é curioso pensarmos isto hoje – porque em 1995 D'Angelo era fora do comum.

“É estranho”, reflecte Carlão, “que ainda o vejamos como uma lufada de ar fresco quando ele usava instrumentos convencionais. Mesmo a gravação era old-school, soava a analógico numa altura em que o digital já tinha grande importância. Seduziu-me esse lado de ir recuperar uma coisa mais orgânica”. Por mais clássico que fosse não deixou de, em Voodoo e segundo Selma, alcançar “a combinação perfeita da espiritualidade do gospel com a complexidade do jazz, a beleza da soul, a ousadia e a crueza do hip hop”.

Também se pode amar um bombo, e esse é o caso de Joaquim Albergaria: “O D'Angelo pedia [ao seu baterista] para falhar beats, oscilar, para embebedar o bombo (é o anti-Whiplash, valha-nos o cosmos). Percebi o apelo desta incerteza, a verdade do groove – o bombo do D'Angelo é o bombo mais próximo de todos os corações, imprevisível mas fiável, surpreendente e familiar, nenhum metrónomo o percebe mas nós sim, nós ouvimo-lo”.

Está bom de ver que para Albergaria isto não é apenas uma questão de bombo mas sim de fazer “música como uma extensão da singularidade de cada músico”, de criar “um vocabulário que quanto mais único, mais imperfeito, quanto mais imperfeito, mais humano, quanto mais humano mais universal”.

Melodias que soam clássicas, beats aparentemente errados mas que tornam a canção mais humana, a capacidade de transmitir uma emoção com palavras simples fazem com que (dizem os músicos) estes discos não soem datados. Quem canta assume influência directa do músico – outros como Carlão ou Miranda mantêm simplesmente uma relação emocional. Albergaria, claramente, começou a ouvir discos de maneira diferente à conta de D'Angelo.

Pelo que tem de haver “um lugar num pódio qualquer” para D'Angelo, na expressão de Tiago Miranda para quem “muita gente que não é melómana gostaria dele se fosse exposta à sua música”. Ele sabe do que fala: “Só muito recentemente ouvi o Voodoo. Na altura não estava virado para a música”. Albergaria diz que “D'Angelo é para sempre”.

Esteve quase para não ser, como é sabido. O que raio terá acontecido ao homem a quem chamam Rei para se ter perdido em mais de uma década de crack?

“Ele tem algo de génio atormentado”, diz Carlão. “No Voodoo há um texto no libreto, que não sabemos a quem é dirigido mas que só pode ser para o Prince, em que o D'Angelo fala da desilusão do gajo enquanto fã perante aquilo em que o seu ídolo se tinha tornado. Isso é um sinal de que o artista que põe a fasquia muito alta. E depois possivelmente bloqueia porque não quer estar abaixo do que já fez”.

Carlão termina com uma frase danada: “O seu génio é a sua maldição”.

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