Não é fácil ser mulher

The Innocents, o segundo disco de Weyes Blood, nome sob o qual se esconde Natalie Mering, é folk assombrada sobre uma mulher tornar-se adulta na América deste exacto momento. Ou hoje em Lisboa e amanhã em Braga.

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O nome sob o qual Natalie Mering edita discos, Weyes Blood, é uma variação do título de um livro de Flannery O’Connorr, Wise Blood, que leu quando tinha 15 anos DR

Natalie Mering gosta de literatura, “particularmente de Flannery O'Connor”.

A autora de Um Bom Homem É Difícil de Encontrar “não é”, contudo, “a [sua] favorita”. “Tenho um apreço muito especial pelo Pynchon”, diz-nos ao telefone, antes de acrescentar que sente “um certo medo de ir ver Inherent Vice”, a adaptação que o ex-miúdo-maravilha, Paul Thomas Anderson, fez para cinema do livro homónimo do criador de V.

Esta conversa sobre livros não surgiu por acaso – o nome sob o qual Mering edita discos, Weyes Blood, é uma variação do título de um livro de O'Connor, Wise Blood, que ela leu “quando tinha quinze anos”. “Nunca mais lhe peguei”, acrescenta. O seu segundo e mais recente álbum chama-se The Innocents, que a custo ela admite ser “uma apropriação do título do filme que adapta A Volta do Parafuso”, livro de Henry James. Tão depressa a podem encontrar a ler Jung como Dylan Thomas ou “qualquer coisa em que ponha as mãos”.

The Innocents – o disco de Weyes Blood – foi colocado nas lojas no final do ano passado; no início deste ano chegou a Portugal. A própria Mering está hoje entre nós, para um concerto na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, e outro, amanhã, sábado, no Gnration, em Braga.

Adjectivar The Innocents como extraordinário, magnífico, comovente ou outras expressões hiperbólicas tornou-se comum nos últimos meses. Caracterizá-lo com justeza é um exercício assaz mais complicado. Até certo ponto é “apenas” um disco folk: guitarra acústica ou eléctrica (mas não distorcida) e voz são o centro de vários temas; em outros o bandolim – de som distorcido electronicamente – torna-se a matriz. Há uma flauta em February skies que nos poderia levar a pensar estarmos face a um daqueles discos revivalistas da folk pastoral de fins da década de 1960, início da década de 1970. Pianos alterados e sintetizadores preenchem o fundo do álbum, criando uma atmosfera alucinatória. A haver pastoralidade, é maligna.

Ou não. “Não estou interessada de todo na maldade”, contrapõe Mering, quando reduzimos The Innocents a “folk pastoral futurista maligna”, uma definição que, valha a verdade, terá tantas interpretações quantas as que as pessoas quiserem. Ela gosta da parte da “folk futurista”, no entanto:

“De toda essa definição a parte com que me identifico é a da folk futurista. Era exactamente isso que eu queria: algo estranho, inclassificável, que não coubesse nas convenções comuns, que vem de um sítio mas não se sabe para onde vai. Qualquer coisa assombrada”.

Coisas estranhas, inclassificáveis e que não cabem nas comuns aconteceram, por exemplo, na discografia dos Jackie-O-Motherfucker, um combo de rock que, eufemisticamente, podemos descrever como alternativo – uma banda da qual Mering fez parte. “Isto não é assim tão novo para mim”, diz a dada altura, “isto não é assim tão estranho para mim”.

Por “isto” presumimos que ela se refira ao território em que The Innocents, não deixando nunca o registo-canção, se cobre de névoas e mistério. Nos Jackie-O-Motherfucker ela tocava baixo, o que nos leva a pensar: quantas vezes é que um baixista de uma banda surge anos mais tarde com um disco soberbo? Poucas.

Ainda assim vai uma grande diferença entre o que os Jackie-O-Motherfucker faziam e “isto”. Nos Jackie cabia tudo: barulheira infernal, metais, improvisação, blues, o que lhes desse na real gana. Com alguma dose de sobranceria poderíamos classificá-los como avant-garde. Podiam ser assustadores para quem não estivesse preparado, frustrantes para quem aprecia o formato canção, mas eram fascinantes na sua imprevisibilidade.

“Isto” é outra coisa. “Ao início isto eram canções folk despidas até ao osso, sem nada”, explica Mering, que mantém, em conversa, aquela distância sobre os outros comum a quem sabe que o que faz não vai agradar a todos, por isso é melhor colocar uma carapaça. O seu tom de voz nunca sofre uma inflexão. Não sobe, não desce e é impossível identificar-lhe alguma emoção – o exacto contrário do que sucede em disco. Já agora, convém notar que ela só esteve com os Jackie-O durante uma digressão: o suficiente para “nunca mais querer pertencer a uma banda ou obedecer às ordens de outros”.

“O meu primeiro disco [The Outside Room, de 2011] é muito mais experimental que este, e muito atmosférico. Não que este não tenha algo de atmosférico, mas no The Innocents escrevo mesmo canções. Era algo que eu queria experimentar: escrever canções. E para fazê-lo tive de centrar o disco na voz”.

E que voz. A forma como Mering projecta cada melodia, ao longo de Innocents, recorda certas musas folk avariadas – se se derem ao trabalho de ler a imprensa estrangeira encontrarão muitas comparações, mas as mulheres de que nos recordamos ao ouvir o disco são Nico, no seu mais cerimonial, e a Buffy Sainte-Marie de Illuminations.

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Mering canta como se estivesse na igreja – mas uma igreja que desistiu de salvar os crentes, não acredita em aleluias e sabe que há feridas que não saram. Perante as comparações, ela retorque, de forma seca, que “nos últimos tempos [tem] tentado imitar o Harry Nilson”. O que, convenhamos, é uma resposta com graça.

E é tom cerimonioso que ela diz que o que canta no disco “É tudo verdade”. Ou seja: é pura autobiografia, o que dado a alta percentagem de lamentos amorosos espalhados pela pauta de cada tema nos leva a crer que o coração da menina Mering não conheceu apenas flores mas também alguns espinhos encravados.

“Se eu disser que é sobre a América ninguém acredita”, lá lhe sai a dada altura. Não é bem assim: escutando com atenção as palavras sente-se que há, a unir cada tema, uma espécie de vontade de abarcar muita coisa, mesmo que a âncora sejam as relações amorosas. The Innocents tem uma dimensão novelesca, por assim dizer, ainda que cada canção seja uma unidade em si mesma: isto é a história de uma mulher, americana, a viver os seus amores e desamores e a sua procura de identidade e felicidade no mundo de agora.

“Não acerca do amor naquele sentido em que algumas canções são sobre uma pessoa deixar outras por desejar uma terceira. Não é 'Gostas mais dela do que de mim'. É sobre relações acabarem por terem de acabar, por não haver maneira de as salvar, é sobre nostalgia, a nostalgia de uma idade em que a inocência era possível e é sobre crescer, sobre alguém tornar-se adulto. É muito mais pessoal do que qualquer outra coisa que alguma vez escrevi”. Excepcionalmente ela põe um pouco de emoção na voz quando reforça a ideia: “Sem dúvida que é mais pessoal”. Depois acrescentou: “E é sobre a América, não estava a brincar quando disse isso”.

Quando Mering “era pequena, passava muito tempo a escrever canções”. Depois fascin[ou-se] por música experimental”, mas o amor por um belo refrão que derrete a cera dos ouvidos começou cedo. Também tem um certo carinho pelo mau gosto – ao fim e ao cabo, deu voz a canções de Mature Themes, de Ariel Pink.

Deve ter sido na Pensilvânia que a pequena Mering começou a trautear lalalas – mudou-se para lá “aos onze anos”, após “uma infância passada na Califórnia”. O pai dela “tinha um gravador de quatro pistas” e a pequena, sempre que o pai estava distraído, não resistia a carregar no REC e colocar vozes sobre guitarras para ver no que dava. É preciso dizer que este pai era fã dos XTC e que a mãe de Mering só tinha ouvidos para Joni Mitchell. O sr Mering queria ser músico, mas um dia, já casado, converteu-se à religião cristã e abandonou o seu sonho – essa conversão sente-se na voz da filha quando esta canta.

O nomadismo está-lhe inscrito no ADN, reflecte, visto ter vivido em inúmeras cidades, em parte “à procura de rendas baratas”, mas também “de conhecer gente”. “Durante três anos [viveu] no Kentucky”, isto sem contar com estadias no Novo México e outras terras do demo até assentar arraiais em Nova Iorque onde actualmente reside. Diz que o seu objectivo era “estudar ervas”, o que é propício a piadas que ela não parece estar interessada em ouvir.

Fossem quais fossem as ervas, fizeram maravilhas: The Innocents pode ter demorado três anos a fazer, e ser “tão urbano quanto rural”, mas aquela folk é som do interior de uma mulher “a crescer enquanto atravessa o seu país”. Ou, do ponto de escuta de quem bota o disco a tocar, folk pastoral futurista catártica. A parte importante é a da catarse.

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