A Europa connosco

A Europa está mais do que nunca na política nacional e com consequências políticas e eleitorais para os próximos tempos.

O tema da União Europeia — entendida como a crise da zona euro, como foi gerida em Portugal nos últimos anos e como queremos que ela seja gerida daqui para a frente — parece dividir hoje os dois principais partidos portugueses. De facto, seja por arrogância inicial do PSD, seja por estratégia própria, o PS, a partir da eleição de António Costa, tem-se afastado do facto de ter assinado o Memorando em 2011. Assim se vai cavando um fosso entre os dois maiores partidos no que diz respeito ao tema da UE.

Essa divisão é nova em Portugal.

De facto, desde a nossa adesão em 1986, do ponto de vista político, a UE foi sobretudo um “gigante adormecido”: todos concordavam que a integração europeia era importante para o nosso país, mas pouco se falava disso nas eleições nacionais. Mesmo quando havia eleições para o Parlamento Europeu não se falava de Europa. Nem dos tratados, nem do Orçamento europeu, nem tão-pouco dos fundos estruturais. Discutiam-se questões nacionais, pura e simplesmente. Isto era assim por duas razões: uma porque a UE era um projecto de elites, do qual os cidadãos estavam em larga medida excluídos. E, não menos importante, porque, desde a nossa adesão à CEE, o processo de integração europeia não dividia os dois grandes partidos, PS e PSD.

Foi assim possível ao PSD ser tão a favor do investimento público, nos anos de ouro dos fundos estruturais, como mais tarde o PS ser a favor da convergência nominal no caminho para a moeda única. Nesses tempos, a Europa e a europeização eram um desígnio nacional, tão estável como qualquer outro objectivo de política externa: os governos e as maiorias mudavam mas as políticas europeias mantinham a sua continuidade.

A nova divisão que se ensaia agora por blocos entre esquerda e direita vem pois quebrar o consenso que sempre houve em torno da questão europeia. E ficou de resto patente na carta aberta que circulou na semana passada, que pedia ao primeiro-ministro para se solidarizar com a Grécia no Eurogrupo, e que foi assinada maioritariamente por socialistas e bloquistas, além de dissidentes de direita.

A divisão em blocos afecta sobretudo o PS, que sempre se afirmou como o partido mais europeísta de Portugal. É certo que a Europa mudou, e muito. Afinal, em 2015, o que pretende o PS? Em primeiro lugar, está a tentar evitar o destino do PASOK, estancando, à sua esquerda,  fenómenos tipo Syriza. Mas é uma estratégia que dificulta a governabilidade num contexto pós-eleitoral sem maiorias absolutas, até porque esta aliança anti-austeridade é mais táctica do que estrutural no PS. Por isso, por ser táctica, sugere uma mais que provável “hollandização” se o PS ganhar as eleições de Outubro de 2015. Note-se, aliás, a ambiguidade de António Costa, que, ao contrário do que os subscritores da carta aberta pretendiam, não assumiu posição a favor de uma reestruturação da dívida, ou de apoio inequívoco ao Syriza. Há, pois, muitos imponderáveis, mas não podemos excluir um realinhamento na política partidária portuguesa, com o PS a alinhar decisivamente no campo anti-austeritário.

Os riscos para o PS são variados (e provavelmente calculados, o que impede um discurso mais claro e menos reactivo). Agora o que me parece verdadeiramente descabido é a indignação à esquerda com o não apoio de Passos Coelho ao Syriza no Eurogrupo. Tratou-se apenas de uma demonstração de que toda a política europeia se tornou nacional. Em 2015, o que um ministro das Finanças grego ganha num Eurogrupo pode determinar quem vence ou perde as eleições legislativas em Portugal. A ser assim, cumpre-se um objectivo da esquerda, que durante décadas falou do défice democrático que existia na UE e de como isso era prejudicial para a legitimidade das democracias nacionais. As decisões deixaram de ser entre elites que chegam a compromissos, longe do escrutínio público.

É pois contraditório que a esquerda queira ao mesmo tempo contribuir para a politização do tema da União Europeia em Portugal, contribuindo assim para a quebra do consenso interpartidário, e ao mesmo tempo exija ao primeiro-ministro que trate a questão da ajuda à Grécia em Bruxelas como se se tratasse da defesa de um interesse estratégico de Portugal (como acontecia nos velhos tempos em que PS e PSD concordavam em excluir o tema europeu da agenda política). Em 1976, o PS concorreu às eleições com o slogan “A Europa connosco”. O realinhamento que a crise do euro trouxe arrisca a afastar o PS desse slogan. Mas a Europa está mais do que nunca na política nacional e com consequências políticas e eleitorais para os próximos tempos.

Investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; marina.costalobo@gmail.com

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