A tirania e os seus fantasmas

O regresso de uma produção de qualidade de Macbeth, com a "diva" Elisabete Matos, em que faltou uma orquestra capaz de cantar.

Foto

Macbeth regressa com os seus fantasmas. Tirano e cobarde, Macbeth é empurrado para o crime desta vez por Elisabete Matos, uma Lady Macbeth implacável que inspira o terror e invoca os "ministros infernais que verteis o sangue".

É ela afinal o centro de toda a intriga e tem o lugar de destaque na reinvenção operática da peça original de Shakespeare. A sua entrada surpreendente - lendo e não cantando - é um exemplo das geniais invenções de Verdi e do seu companheiro libretista Francesco Maria Piave nesta obra estreada em 1847.

A ópera de Verdi possui outros belos momentos de teatro, logo desde o início em que as bruxas prevêem o futuro, ou nas ocasiões em que a orquestra se cala para sublinhar o que é dito e dar um novo impulso dinâmico à cena. Apesar da boa solução cenográfica inicial, com o caldeirão e os grandes espelhos partidos, o coro das bruxas não teve contudo a força que devia ter, numa entrada atabalhoada com a orquestra. Domenico Longo não marcou bem o tempo nem explorou a fundo os recursos orquestrais de Macbeth noutras passagens. A orquestra verdiana não se limita a acompanhar os cantores e a recriar o ambiente escuro e terrível dos crimes palacianos, muitas vezes ela é chamada a cantar também. E não cantou como podia.

Mas houve Elisabete Matos no papel da terrível Lady, com algumas excelentes intervenções nocturnas e arrebatadas na sua atracção sanguinária pelo poder. Não foram apenas truques vocais (escurecer a voz ou uivar assustadoramente), mas uma construção muito consistente da perigosíssima Lady Macbeth.

O barítono espanhol Àngel Òdena teve momentos muito bons, mas nem sempre agarrou vocalmente a sua personagem contraditória, ao mesmo tempo ambiciosa e cavada pelo medo. Excelente foi o tenor Enzo Peroni, com uma fabulosa intervenção no último acto: "O figli, o figli miei!", em que denuncia a tirania depois do coro de fugitivos cantar aquele que podia ser um hino do Risorgimento italiano "Pátria oprimida, não posso dar-te o nome de mãe..." O coro esteve aqui muito bem, tal como nas fortíssimas cenas do fim do primeiro e segundo actos.

 

A encenação (uma revisão da produção que esteve em São Carlos em 2007) acerta no essencial, mas falha redondamente no final: pois aquele povo oprimido é no fim "arrumado" na celebração do novo poder com o coro de mulheres todas vestidas de igual, numa simbólica que nos parece limitar o ímpeto emancipador de Macbeth.

É preciso contudo felicitar as boas soluções cénicas, incluindo a estrutura circular que é por vezes um caldeirão das bruxas, mas também olho, espelho, lua, mesa (e até uma espécie de CD gigante) e as duas cadeiras (uma pequena que se transforma numa grande) que funcionam muito bem numa ópera que denuncia os crimes sucessivos de quem se quer manter a todo o custo no poder. Ópera política, sim, e bem actual.

Elisabete Matos, com muitos fãs entre o público presente, é de facto uma grande estrela - e não desiludiu. Mas, infelizmente, nós também ouvimos Dimitra Theodossiou a ser Lady Macbeth em 2007 nesta mesma produção, e não podemos deixar de comparar: a cantora grega foi ainda mais terrível, mais tresloucada, mais sanguinária.

Sugerir correcção
Comentar