Açúcar. O grande vilão

Entrou para a lista negra dos maus alimentos mas foi o consumo excessivo que fez dele o mau da fita.

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Está há séculos na despensa, mas, de repente, passou a ser alvo de perseguição. Chamaram-lhe vilão, compararam-no a uma droga, culparam-no pelo aumento da obesidade, da diabetes, das doenças cardiovasculares, das cáries que assaltam os dentes das crianças. Colocaram-lhe um imposto, em países como a Finlândia e França, ameaçaram fazer o mesmo em Portugal. O açúcar, que transforma refeições sem interesse em iguarias, actor principal de sobremesas, passou a estar na lista negra dos alimentos. Multiplicam-se os estudos, as teorias, a literatura. Os consumidores preocupam-se, a gigante indústria alimentar segue-lhe os passos e procura alternativas para adoçar a comida e manter as vendas.

Na verdade, a culpa não é dele. É dos excessos. Do consumo desenfreado e camuflado através de refrigerantes, molhos processados, pão, salsichas, comida para bebés, um sem-número de produtos já preparados que usam esta matéria-prima para dar sabor e prolongar o prazo de validade. O mundo engordou, foi longe de mais. Há, por isso, cada vez mais pessoas a tentar colocar um ponto final nesta relação de longa data.

Eve O. Schaub, escritora americana, embarcou num desafio com a família (marido e duas filhas) e decidiu não consumir açúcar durante um ano. A experiência, relatada no livro Year with no sugar, terminou numa noite de Ano Novo. “Claro que ficámos à espera da meia-noite e comemos um doce quando o relógio deu as 12 badaladas, mas na verdade foi… anticlímax! Não gostámos assim tanto. De facto, percebemos ao longo do tempo que perdemos a nossa apetência por sobremesas cheias de açúcar. E quando queríamos comer um doce preferíamos algo mais subtil como um sorvete de fruta”, conta por email à Revista 2.

A maior descoberta que a família de Eve fez foi ter consciência da presença maciça de açúcar na comida que consumia todos os dias. “Está em três quartos dos produtos do nosso supermercado local [em Pawlet Vermont] e consumimos quase metade do açúcar em alimentos que não são tão óbvios como os refrigerantes ou as bolachas. Funciona para realçar sabor, preserva e é barato, por isso, encontramo-lo em molhos para saladas, caldo de legumes, manteiga de amendoim, maionese. A lista continua — não há quase nada em que a indústria alimentar não ponha açúcar. E contabilizámos quase 54 tipos diferentes, desde xarope de milho a sumo de uva orgânico evaporado”, descreve. “De repente, estamos a comer a sobremesa ainda antes de chegar ao final da refeição.”

Eve inspirou-se no endocrinologista Robert Lustig para fazer a experiência e o discurso do médico americano, que se dedica há duas décadas a tratar crianças obesas, não é meigo. O açúcar é um veneno. “[No caso do tabaco] demorou muito tempo, mas as indústrias não podem envenenar pessoas em massa para sempre”, disse, numa entrevista ao britânico The Guardian. “Temos de fazer algo quanto a isso ou não haverá cuidados de saúde. De facto, não haverá sociedade”, sentencia.

O mesmo discurso tem Jamie Oliver, chef reconhecido pelas suas campanhas por uma alimentação saudável nas escolas britânicas. “O açúcar é definitivamente o próximo perigo. É o próximo tabaco. E a indústria deve ser taxada tal como a do tabaco ou qualquer outra que possa destruir vidas”, disse recentemente, citado pelo Daily Mail.

Os números dão que pensar. O consumo diário de frutose — açúcar que se encontra naturalmente na fruta e em alguns legumes mas cujo consumo excessivo é perigoso, já que é convertido em gordura pelo fígado — duplicou nos últimos 30 anos em países como o Reino Unido, Estados Unidos ou Índia. Estima-se que a procura mundial de açúcar dispare 40% até 2023 devido ao aumento do consumo na China e em África. Por cá, segundo o INE, cada português come 30,3 quilos por ano, o valor mais baixo desde 2008/2009 (34 quilos). Índia, União Europeia, China, Brasil e EUA são os maiores consumidores mundiais desta matéria-prima, cuja procura tem crescido mais de 2% ao ano.

“Não é um alimento necessário, dá-nos energia e rigorosamente mais nada. O que sabemos é que há uma franja da população que o ingere para lá do que é aceitável. E a fonte de açúcar que mais nos preocupa são as bebidas: sumos, refrigerantes, néctares, chás gelados. Há crianças que bebem mais do que uma lata por dia”, diz Nuno Borges, nutricionista da direcção da Associação Portuguesa dos Nutricionistas.

Maria Paes de Vasconcelos, também nutricionista, recorda que o açúcar faz parte da gastronomia há muitos séculos (os indianos foram os primeiros a extrair o suco da cana por volta de 500 a.C.) e, por isso, não faz sentido bani-lo por completo. “É útil no adoçar de alguns alimentos que, pelo seu sabor ácido ou amargo, podem ajudar quem quer consumi-los”, como o iogurte e alguns citrinos, café ou legumes. Numa alimentação saudável, “faz todo o sentido incluir o açúcar em dias especiais e também nos dias normais se se usar com parcimónia: não se fica viciado por se beber café ou comer iogurte apenas com açúcar!”, continua a nutricionista.

O problema é o excesso. É quando se ultrapassa a fronteira constantemente e em quantidade. “Além da frequência, é preciso pensar também na dose ingerida (...) Se houver exagero, os primeiros problemas estão a nível oral, com as cáries”, alerta. Segue-se o aumento de peso e a obesidade. Nuno Borges acrescenta que há uma ligação “relativamente forte” entre o consumo exagerado de açúcar e o aparecimento de doenças metabólicas e a resistência à insulina. Contudo, não é prejudicial quando quem o consome de forma equilibrada tem um peso normal.

As recomendações quanto à quantidade de açúcar que devemos ingerir por dia não são claras porque “falam em açúcares simples totais, que incluem os do leite e da fruta”, descreve Maria Paes de Vasconcelos. A Organização Mundial de Saúde recomenda que o consumo não ultrapasse 10% das calorias ingeridas por dia, idealmente menos de 5%, “o que equivaleria a 25 gramas de açúcar para um adulto saudável — quatro pacotinhos de seis gramas”. “O melhor é usar o mínimo”, acrescenta.

Uma coisa é certa: as calorias que provêm dos açúcares são designadas por calorias “vazias” e com pouco interesse nutricional. Não precisamos deste ingrediente, mas alguém com um peso normal e uma vida saudável pode consumi-lo de forma equilibrada.

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Ainda assim, as novas tendências de comida saudável têm trazido cada vez mais alternativas, supostamente naturais e menos processadas. Do xarope de ácer ou de milho, passando pela geleia de arroz.

Filipa Range, que criou a Cozinha Verde, empresa de comida vegetariana, acrescenta bananas maduras, tâmaras biológicas ou açúcar de coco à lista de ingredientes que usa na confecção de bolos e sobremesas. Procura alimentos mais naturais desde que há dois anos mudou a sua dieta alimentar. “No início comia tudo desde que não fosse de origem animal. Mas à medida que ia comendo mais fruta e legumes comecei a sentir menos necessidade de comer coisas processadas e refinadas. Foram pequenos hábitos que deixei, como bolos de pastelaria, por exemplo. Passei a fazer eu as sobremesas e a sentir-me mais saudável”, conta.

Em termos nutricionais, diz Nuno Borges, xaropes de arroz, milho ou agave são outras formas de consumir açúcar. “Trocá-lo por mel não tem vantagem nenhuma. São outros açúcares, não são adoçantes artificiais”, esclarece. Nesta última categoria, entram o aspartame ou o acessulfame K que, refere Maria Paes Vasconcelos, “são muito seguros” para quem quer reduzir os açúcares da alimentação. Na lista dos adoçantes artificiais entra a stevia, que a indústria de bebidas tem usado cada vez mais para substituir o açúcar.

Contudo, a opinião sobre os adoçantes não é consensual. Albino Oliveira-Maia, que dirige a Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Clínico Champalimaud, adianta que “começa a haver evidência de que essas substâncias não são inócuas”. “Mecanismos não totalmente conhecidos podem passar por efeitos na flora intestinal e mesmo os adoçantes artificiais poderão ter um efeito nocivo para a saúde”, aponta.

Filipa Range não os usa. Prefere as geleias ou a fruta e sublinha que o que está em causa é a redução das quantidades, ao ponto de hoje já não lhe saber bem comer um bolo demasiado doce. “Já não tenho tanta necessidade. Sei bem o que é precisar de comer qualquer coisa com açúcar, antes não tinha atenção. Quanto mais comemos, mais vontade temos de comer”, ilustra.

A jornalista brasileira Cláudia Pas Bjorgum, autora do blogue Sabor Saudade e a viver em Trondheim, na Noruega, relata a mesma experiência. “A sensação de bem-estar de viver sem açúcar foi instantânea e ainda que seja difícil deixar de comer, com o tempo o paladar se ajusta e passamos a não gostar mais do sabor doce, passa a ser enjoativo”, conta, numa entrevista à Revista 2 por email. Cláudia, que está a fazer doutoramento sobre agricultura biológica, teve hipertiroidismo, uma doença auto-imune que só conseguiu controlar depois de deixar de consumir açúcar. Continuou a comer fruta, mas em menor quantidade, e sentiu melhorias “instantâneas”. Encontrar alternativas é difícil porque “nada se compara ao açúcar”.

“É muito versátil, dá vida a tudo na cozinha, molhos, carnes e doces, por isso a busca por alternativas é ingrata. Depois de alguns fracassos, desisti do processo. E hoje a única alternativa que uso é stevia em gotas para adoçar uma série de cremes, chantilly, pudins, iogurtes e gelatinas”, conta.

Cláudia não recomenda o uso de xaropes naturais (ricos em frutose) e olha para a questão de uma forma prática. “Sinceramente, acho um disparate procurar alternativas. A busca por substitutos acaba alimentando o vício do doce e o que queremos é reordenar o paladar e deixar de gostar de doce. O melhor é comer uma fruta e se contentar”, diz, acrescentando que cada pessoa deve encontrar “o seu próprio caminho”. “Hoje, se quero um doce, como um doce de verdade, mato a vontade e depois policio-me. Mas a verdade é que já não consigo mais comer muito doce. Uma mordida num chocolate já me alivia por um bom tempo.”

Esta ligação quase emocional e, muitas vezes, de dependência, tem sido comparada em algumas investigações ao uso de drogas, nomeadamente de cocaína. Albino Oliveira-Maia esclarece que, no que toca aos efeitos no comportamento, não há paralelo entre as duas. Mas no que toca ao diagnóstico de dependência, o cenário é outro, ainda que numa escala diferente. “Num diagnóstico de abuso de droga, poderemos pensar que a pessoa está a investir muito tempo no consumo daquela substância, consome-a em prejuízo de outras coisas e, de algum modo, sente-se culpada por estar a fazê-lo. Se pensarmos desta forma, o açúcar poderá assumir algumas destas características para grande parte de nós. Talvez quase como uma droga light”, ilustra.

Com ou sem excesso de peso, a “restrição ao consumo é difícil de uma forma transversal”. E é no cérebro que tudo se passa. “O açúcar é bom e temos tendência a repetir as coisas de que gostamos. Há determinados neurotransmissores e áreas cerebrais que parecem estar envolvidas no reconhecimento de algo que para nós é agradável. São designadas ‘zonas ou substâncias do prazer’. E há um destes neurotransmissores que tem sido mais estudado: a dopamina”, explica Oliveira-Maia. O consumo de álcool, heroína e cocaína aumenta a concentração de dopamina no cérebro e o mesmo se passa com o açúcar. “Os comportamentos são diferentes, mas têm aspectos em comum, no seu efeito no sistema nervoso central”, continua.

O especialista lembra que já houve alturas em que a cocaína e substâncias semelhantes eram usadas legalmente em produtos comuns para estimular o consumo (como nos refrigerantes) e hoje o seu uso é ilegal. “O açúcar é um motivador bestial. É muito fácil para qualquer pai cair na tentação de o utilizar como forma de motivar o filho a fazer determinada tarefa. O sal e a gordura também podem ter esse estímulo. E o estímulo mais forte para motivar comportamentos são alimentos ricos nestas substâncias como um bolo ou batatas fritas”, exemplifica. Albino Maia acredita por isso que, mais cedo ou mais tarde, a regulamentação mais apertada vai chegar, mas não a proibição total.

Na casa de Eve, comer doces passou a ser uma excepção, tal como beber um copo de vinho. As crianças, de seis e onze anos, não tiveram margem para recusar o fim das guloseimas em casa, mas podiam comer em festas de anos desde que, depois, contassem à mãe. “Quando lhes falei do projecto, começaram as duas a chorar. Esse foi o dia mais difícil de toda esta experiência. Mas passei a fazer-lhes os lanches para a escola e quando alguém lhes oferecia doces sem estarem na nossa presença dei-lhes liberdade para escolherem. Sem culpa, nem repercussões. A única condição era dizerem-me. Por vezes, e para espanto meu, elas decidiam mesmo não aceitar os doces”, conta.

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