Uma pequena obra para transformar a cidade

Numa antiga ruína do centro do Porto está a concluir-se uma obra de arquitectura que oferece novas perspectivas sobre os caminhos que a cidade pode vir a tomar.

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Os quarteirões desta zona do Porto – onde desde há alguns anos se agruparam as galerias de arte – são traçados a partir de uma rede regular de ruas FERNANDO VELUDO/ NFACTOS
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“Queríamos conseguir harmonizar a tradição com a cultura contemporânea,” dizem os arquitectos FERNANDO VELUDO/ NFACTOS
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Este prédio não reproduz o esquema elementar do rés-do-chão, caixa-de-escadas, esquerdo-direito, quartos-para-um-lado, sala-e-cozinha-para-o-outro FERNANDO VELUDO/ NFACTOS
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O acesso aos apartamentos faz-se por uma galeria a céu aberto que conduz a uma escada comum também ela exterior FERNANDO VELUDO/ NFACTOS
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FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

“Aqui podia morar gente!” É um slogan que inquieta todos. Estava grafitado numa fachada de um prédio abandonado, no cruzamento das ruas do Breiner e do Rosário, no Porto. Foi essa provocação que despertou a vontade de Fernando Dias – um investidor e construtor da região do Porto – a adquirir o terreno, contratar uma dupla de jovens arquitectos – César Machado Moreira e Claudia Dias – e, em cerca de quatro anos, transformar uma esquina decrépita num lugar onde vai morar gente.

Entre os transeuntes não falta quem pense que este prédio de apartamentos é estranho: a antiga fachada foi integralmente pintada de cinzento e, por detrás dela, emergiu uma nova estrutura, com janelas grandes e uma fachada independente revestida a zinco preto antracite. Não há engano possível, o projecto de arquitectura propõe uma solução como modelo alternativo de intervir da cidade. “Queríamos conseguir harmonizar a tradição com a cultura contemporânea,” dizem os arquitectos. Só que, ao contrário desse lugar-comum tantas vezes vazio de conteúdo, o projecto explora essa possibilidade com risco e proveito. É uma pequena obra corrente, precisamente por não ser extraordinária e ser feita com elegância e rigor, justifica um olhar atento.

Um modelo alternativo

Este prédio não reproduz o esquema elementar do rés-do-chão, caixa-de-escadas, esquerdo-direito, quartos-para-um-lado, sala-e-cozinha-para-o-outro que, durante os anos do progresso económico e do boom construtivo, tomou Portugal de norte a sul fazendo-nos crer que há apenas duas maneiras de habitar (a casa individual com jardim e garagem ou o apartamento horizontal num prédio de condomínio). Essa ideia teve efeitos nefastos quando os empreendedores imobiliários e os seus arquitectos, depois de esgotarem as áreas de expansão urbana, reivindicaram a intervenção nas zonas históricas como prioridade e atacaram o centro da cidade com os mesmos modelos com que reconfiguraram a paisagem do país. No Porto – salvo honrosas excepções de restauro e requalificação cuidadosa, na maioria dos casos discretas e não celebradas – os resultados foram trágicos. Em muitos casos deveria dizer-se destruição urbana em vez de reabilitação urbana, tal foi a falta de critério e competência que presidiu a numerosas intervenções no centro histórico. Ao invés dessa dinâmica infeliz, esta obra oferece um modelo alternativo aos modos de habitar convencionais e às práticas de investimento predatórias, tendo como motor a qualidade do projecto de arquitectura e de execução da obra.

Os quarteirões desta zona do Porto – onde desde há alguns anos se agruparam as galerias de arte – são traçados a partir de uma rede regular de ruas. Inicialmente, há 150 anos, existiam muitos lotes grandes, com muros para rua e ocupados por casarões individuais. A pressão de urbanização fez com que os quintais sobrantes fossem loteados em fatias estreitas, as casas progressivamente demolidas e transformadas em prédios de habitação colectiva. Ao longo do século XX as ruas tornaram-se fechadas (ditas rua-corredor) e passaram a contrastar com os quintais abertos e verdejantes, privados, no interior dos quarteirões. Este processo apenas teve soluções alternativas entre os anos 30 e 40 do século passado, quando os arquitectos modernos ensaiaram construir de outro modo: prédios soltos e por vezes perpendiculares à rua, em que a interrupção do contínuo de fachadas e a manutenção de alguns muros e garagens baixas permitia que a luz e a vegetação dos jardins chegasse ao espaço público. Criava-se assim uma urbanidade mais complexa, que permitia ler as múltiplas camadas da sua própria estrutura e oferecia vários modos de uso. Nos anos 50, com a entrada em vigor do Regulamento Geral de Edificações Urbanas, essa tendência foi desaparecendo e, os prédios a fechar a rua, mais ou menos recuados, transformaram os quarteirões em blocos maciços e impenetráveis. A partir dos anos 60 e até agora, o modelo do esquerdo-direito dominou.

Este novo prédio ocupou uma esquina, a parcela era pequena e não tinha logradouro, ou seja, não havia possibilidade de abrir o interior do quarteirão para a cidade. Mas, em vez de utilizar a forma fechada que a fachada antiga parecia sugerir, o edifício destaca-se no seu interior em quatro volumes isolados, com formas diferenciadas, que configuram quatro pequenas “torres” onde se sobrepõem os apartamentos (6 T1’s duplex, 2 T1’s e 1 T2 duplex). Ao dissociar os quatro pisos da nova fachada interior dos dois da velha fachada o projecto conseguiu não destruir a escala da memória urbana (os dois níveis de janelas escondem agora quatro pisos novos), e a fachada antiga passou a funcionar como um filtro entre as pequenas residências (de janelões amplos e generosos) e a rua bastante movimentada. Esta dissociação parece confirmar a possibilidade de “conciliar o velho e o novo,” a tal “harmonia com a tradição,” mas esse argumento é apenas um efeito retórico da linguagem construtiva. O novo tira partido do velho, mas o velho deixou, naturalmente, de ser o que era: a camada de cinzento que unifica as cantarias de pedra e as superfícies de reboco toma conta de tudo e transforma o que existia, o património, num elemento plástico que faz parte da nova cidade. A solução é discutível mas abre espaço para experimentar uma distribuição de apartamentos inovadora.

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Uma dupla de jovens arquitectos – César Machado Moreira e Claudia Dias – transformou uma esquina decrépita FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

O acesso aos apartamentos faz-se por uma galeria a céu aberto que conduz a uma escada comum também ela exterior. As janelas dos apartamentos abrem para a fachada antiga, para um pátio interior voltado para a parede cega no limite da propriedade do vizinho, para a galeria de acesso e, por consequência, estão a poucos metros da janela dos vizinhos da frente. Os arquitectos chamam-lhe uma “ilha contemporânea,” fazendo referência às formas de convivência e sociabilização que existiam nos bairros operários do passado. Só que, ao contrário das casas das “ilhas do Porto” que apenas tinham uma frente, estas casas são ventiladas, luminosas, e com excelentes condições de habitabilidade. Os mecanismos de acesso aos apartamentos, possíveis pelo descolar das fachadas, são o dispositivo através do qual o projecto ganha sentido. As opções de materiais e linguagem decorrem dessa vontade de transformar o Porto numa cidade mais aberta e, quem sabe, mais cosmopolita: o betão aparente, os soalhos assentes em ripado com caixa-de-ar, as grandes janelas do chão ao tecto inundam os compartimentos de luz – e deixam às cortinas a função de escurecer e ocultar a visibilidade em função dos gostos de quem habita o lugar –, os móveis encastrados em sintonia com a forma dos espaços, a iluminação embutida, enfim, todos os requintes e sinais de gosto que os arquitectos portugueses conquistaram e que inundam as revistas nacionais e internacionais de arquitectura e lifestyle. Mas não é a expressão elegante da construção que transforma a forma da cidade, é o modo como os apartamentos se articulam entre si e prolongam essa articulação com a vida pública. A dimensão dos quartos ou a maneira como os duplexes oferecem várias possibilidades de uso são coerentes com a riqueza de espaços e sensações que a disposição do prédio oferece.

O cliente

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A fachada antiga passou a funcionar como um filtro entre as pequenas residências (de janelões amplos e generosos) e a rua bastante movimentada FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Não há boa arquitectura sem bons clientes. São eles que definem os termos e as condições de trabalho dos arquitectos e têm a última palavra a dizer na mediação entre as autoridades municipais, o construtor, os utilizadores das obras e a miríade de agentes implicados na construção. Neste caso as escolhas do cliente eram claras: construir nove apartamentos para o mercado de arrendamento e construir com o máximo de qualidade. “Não gosto de paredes em papel, essas paredes que agora se fazem em gesso cartonado. Não quero dizer que não sejam uma boa solução e eficazes em muitas circunstâncias, mas no arrendamento o principal factor para que tudo corra bem é a durabilidade. E para que a construção dure tem de ser bem-feita”, explica Fernando Dias. O cliente, simultaneamente promotor da obra e construtor, confessa-se um apaixonado pela arquitectura: a obra reflecte essa paixão. Em conversa pressente-se a confiança que depositou nos arquitectos e, em frases curtas e assertivas, deixa transparecer o orgulho que tem em contribuir para trazer novos habitantes para esta zona do Porto.

A estratégia era clara: investir no mercado de arrendamento. A crise deu-lhe o impulso para aproveitar o abrandamento da actividade de construtor e encontrar “momentos para equilibrar o ritmo de trabalho,” mobilizando trabalhadores e equipamentos que, sem esta obra, estariam provavelmente parados. Na sua opinião, “reconstruir é melhor do que reabilitar.” A reconstrução permite soluções técnicas mais fiáveis, menos dependentes de percalços que a reabilitação tende a suscitar e garante custos de manutenção inferiores que são fundamentais para a eficiência de habitações em arrendamento. Outro aspecto decisivo, em reabilitações ou reconstruções na cidade histórica, é o peso do estaleiro. Instalar gruas, fazer cargas e descargas em espaços condicionados, coabitar com trânsito automóvel e de peões, ocupar a via pública e outras peripécias que estas situações geram, faz com que o estaleiro pese 7,5% a 10% no orçamento da global da obra. Apesar de tudo, e pelo menos neste caso, a organização do estaleiro não teve impacto na concepção nem na disposição do edifício. O cliente, com um sorriso, considerou este projecto de arquitectura “mais vanguardista,” e reconheceu que essa opção implicou um investimento maior. Mas não hesitou em afirmar: “penso que vou recuperar o investimento.” O valor da arquitectura, para além do valor acrescentado da qualidade de construção, tem atraído potenciais clientes.

Forma política e forma técnica

É irónico pensar que o grafito do Bloco de Esquerda deu impulso à promoção de prédios de rendimento. Mas para além do slogan, há que considerar uma efectiva mudança de política no que se refere à actuação dos serviços municipais, ultrapassando o seu preconceito habitual em relação às obras particulares. Eram conhecidos e de senso comum os prazos dilatados que a autarquia praticava na aprovação e licenciamento de obras para pequenos investidores, em contraste com velocidades relâmpago para o licenciamento de grandes operações promovidas por fundos de investimento e grupos económicos. Neste caso, cliente e arquitectos louvam a agilidade dos serviços: o processo até só demorou um ano entre a entrega do processo de licenciamento e a emissão do alvará de construção. Contudo, os serviços técnicos da autarquia não deixaram de ter uma influência directa e decisiva na forma do edifício. O prédio confronta a norte com uma empena de uma parede meeira entre os dois prédios, muito alta, uma vez que o prédio vizinho foi construído à revelia da regra de ouro que consiste em limitar a altura máxima da construção à largura da rua que o acolhe. Uma primeira versão do projecto fazia subir os apartamentos mais recuados, respeitando a regra urbanística e resolvendo formalmente a relação entre formas no encosto à parede do vizinho. Mas o técnico municipal responsável pela apreciação do projecto emitiu uma opinião desfavorável e, a sua opinião, teve um efeito directo na forma da obra e da cidade, contrariando a opção inicial dos autores do projecto: o prédio ficou mais baixo e deixou à mostra a grande parede cega. Não se trata de discutir a qualidade de uma ou de outra solução, ambas legítimas, mas de reconhecer que a forma da cidade não é só determinada pelos autores dos projectos e que os funcionários municipais se armam do poder político e técnico para intervir e conduzir a transformação urbana.

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A obra ainda não terminou FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Novas formas do habitar

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O edifício destaca-se no seu interior em quatro volumes isolados, com formas diferenciadas, que configuram quatro pequenas “torres” onde se sobrepõem os apartamentos FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Com a obra a concluir-se é evidente que a cidade se está a transformar. O êxito dos pequenos apartamentos com design contemporâneo parece contrariar o panorama do envelhecimento da população. O acesso por escadas sem elevador confirma que são casas para uso temporário, de curta ou longa duração, para quem quer habitar um lugar com cores novas. A experimentação nas formas dos apartamentos e, sobretudo, na relação entre eles com o tecido urbano e com a herança patrimonial dão corpo a essas possibilidades. As circunstâncias geradas pelo trabalho à distância, pela mobilidade internacional, pela variação das taxas de câmbio e outros factores improváveis podem trazer novos habitantes à cidade. Para que o tecido urbano se possa renovar não basta preencher os vazios com modelos de habitação ultrapassados, é preciso inventar novas formas e dar espaço a novos usos. Este prédio na esquina da Rua do Breiner com a Rua do Rosário não é, seguramente, a única solução alternativa aos modelos correntes de produção de habitação, mas demonstra como, com bom desenho, boa arquitectura e boa construção, se pode fazer melhor cidade.

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