A isto chama-se virar a guitarra para dentro

Depois de dois anos enquanto técnico de som da Zé dos Bois, Guilherme Gonçalves juntou pedaços de tudo aquilo que lhe passou pelos ouvidos e inventou um projecto de guitarra eléctrica solo chamado Cóclea. O disco está aí e sábado há concerto no Rescaldo.

Foto
O músico começou a conceber um novo corpo musical feito de pedaços “roubados” àquela chusma de gente e de diferentes visões musicais que lhe invadia os dias DR

Guilherme Gonçalves sempre tinha tratado a guitarra como um condutor de electricidade abrasiva, como atalho para uma torrente de distorção aprendida ao mesmo tempo que percebia como manejar o instrumento segundo os mandamentos do hardcore.

Mas a sua integração na equipa da Galeria Zé dos Bois (doravante designada na sua mais popular versão – ZdB), enquanto técnico de som ao serviço do Aquário (sala com vista para as ruas do Bairro Alto na ZdB), obrigaria a que passasse a olhar para a guitarra desconfiando dos seus atributos anteriores. Entre 2005 e 2007, expostos à programação musical da casa, distribuída por duas noites semanais de dois/três concertos, os ouvidos de Guilherme Gonçalves foram vergastados e reeducados por uma série de projectos que tanto podiam estar filiados no noise mais radical, na música improvisada vizinha das vanguardas do jazz, no rock mais retorcido ou nas mais vítreas canções de uma folk marginal.

Diante de tudo, quase sem se aperceber, o músico começou a conceber um novo corpo musical feito de pedaços “roubados” àquela chusma de gente e de diferentes visões musicais que lhe invadia os dias. Era como se alguém tivesse desdobrado um gigantesco catálogo de fracções musicais com as quais Guilherme se podia alambazar à vontade. E isto era válido tanto para a música propriamente dita quanto para as ferramentas e os processos de a alcançar. “Naquele período, tive acesso a muita informação e todas as semanas conhecia muita gente com diferentes discursos artísticos”, relata. “Isso permitiu-me abrir horizontes e partir para uma aventura de exploração a nível criativo, o que aconteceu com um projecto a solo, recorrendo à guitarra eléctrica.”

No meio desse pântano de centenas de concertos que lhe passaram efectivamente pelos ouvidos, alguns foram essenciais para lhe sugerir o caminho a tomar com Cóclea: a pop espacial e atmosférica dos Windy and Carl, a folk arisca de Samara Lubelski acrescentada do filho bastardo de Nick Drake e/ou Bert Jansch baptizado P. G. Six, a chinfrineira densa e nebulosa dos Yellow Swans e o psicadelismo de ambição extra-planetária dos Acid Mothers Temple. Tudo isto, a união destes extremos nervosos, encontra-se de alguma maneira nos caminhos que a guitarra eléctrica de Guilherme Gonçalves vai desenvolvendo no álbum de guitarra eléctrica a solo que agora edita pela Shhpuma e apresenta este sábado, na Culturgest, Lisboa, numa das noites mais fortes do festival Rescaldo, cedendo depois o palco a Lula Pena.

Estabeleçamos isto: foram estas referências díspares que ouvia em concerto na ZdB, mas que acompanhava em cada momento da sua preparação, a preencher os espaços de cada uma das suas dúvidas relativamente ao “know-how em termos tecnológicos, de material ou pedais de guitarra, e processamento de som”, assim como a ultrapassar carências “de algum conhecimento artístico e musical”. “O que é engraçado é que nunca foi algo que procurasse muito, veio tudo ter comigo e, às tantas, percebi que me eram mostradas coisas que sempre tinha imaginado querer fazer mas nem sabia muito bem como.” O curso intensivo atrás da mesa de mistura da sala lisboeta mostrou-lhe então que a intensidade de uma guitarra explorada com a distorção no máximo e o botão do volume a tocar o vermelho podia ser trocada por uma exploração sónica mais introspectiva, sem se deixar cair no perigoso embuste da inconsequência. No fundo, Guilherme Gonçalves queria virar a guitarra para dentro, perceber quais os vários trilhos que podia cruzar livremente em cima do instrumento.

Anos de Gala
Tudo aconteceu mais ou menos ao mesmo tempo. Em 2007, Guilherme Gonçalves deixou o trabalho na ZdB, iniciou o seu percurso a solo enquanto Cóclea (já vamos ao nome, mais um par de parágrafos, por favor) e substituiu Tiago Miranda nos Gala Drop. Não é meramente circunstancial este elencar de acontecimentos. Do catálogo de sons da ZdB nasceu Cóclea, como já vimos, mas a coincidência temporal com a entrada nas fileiras desses mestres da música expansiva chamados Gala Drop permitiria a Guilherme reforçar a ideia de que a sua via a solo, “sem ser fechada ou soturna”, prosseguia por terrenos mais introspectivos – é isso que nos conta Mermaid’s Theme, guitarras desprendidas, por camadas, daquilo que poderiam ser canções arregimentadas pela dream pop, herdadas dos My Bloody Valentine.

Ao serem essencialmente uma banda de comunhão e de festa, cuja sonoridade enleada em referências africanas, jamaicanas e uma série de outras “anas” é gloriosamente expelida para fora, os Gala Drop funcionavam como perfeito reverso daquilo que o guitarrista explorava a solo. “No tempo em que estive com os Gala Drop fizemos cinco tournées europeias e isso permitiu-me estar sempre a tocar guitarra, a explorar novas ideias, outras interacções com os instrumentos, novas abordagens à guitarra e tomar conhecimento de outras abordagens musicais e outros estilos de música”, lembra. E nessa medida, apesar da distância entre a música que ouvimos nos dois cenários, Cóclea é também uma decorrência assumida da actividade que desenvolveu com os Gala Drop até finais de 2014.

Quer entremos neste disco pela porta do magnífico orientalismo rumo ao excesso de Scorpio’s Theme ou pelo western degenerado de “Desire”, aquilo que encontramos na música de Cóclea é uma digestão controlada de loops de guitarra programados para viverem em conjunto, espalhados com pinças pelo espectro sonoro, numa mistura de construção e improvisação. “É como se fôssemos fazer um trekking qualquer numa montanha”, compara Guilherme Gonçalves, “e nos dessem os meios necessários, os mapas e as coordenadas principais. Mas depois haveria vários caminhos para chegar ao fim e caminhávamos com liberdade a partir daí.” Pontuada por loops que servem de bandeiras de sinalização, a guitarra avança depois por sua conta e risco.

Agora, que o seu projecto com nome do órgão do ouvido interno (em espiral e responsável pela distinção dos diferentes espectros de frequências sonoras) deixa as edições limitadas em CD-R e arrisca uma vida mais afirmativa, o guitarrista abana também a definição do seu projecto apresentando-se no Rescaldo em quarteto – com Yaw Tembé na trompete, Shella (ex-Paus) nos teclados e Alex Klimovistsky (Youtless) em voz e electrónica. A partir de amanhã, tudo poderá ser diferente.

Sugerir correcção
Comentar