O misantropo precisa de amigos

Durante uma década Matthew Houck liderou, sozinho, os Phosphorescent. Quando estava farto, lançou mais um disco de country espacial, Muchacho. Dois anos depois, o sucesso do álbum reflecte-se em Live at the Music Hall – tremenda celebração da euforia que por vezes acompanha a tristeza.

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Isso é uma arma no bolso ou estão só felizes com o disco ao vivo dos Phosphorecent?

Devem estar: é um pedaço extraordinário de country, que a banda atira para o espaço, atacando cada canção com a sofreguidão dos danados – ou dos desesperados que sabem que tudo pode acabar a qualquer segundo. Ao fim e ao cabo, esta banda era suposto já não existir.

“É estranho”, diz Matthew Houck ao telefone de Nashville, onde agora vive, “mas a tristeza que trespassava Muchacho transformou-se, ao vivo, numa espécie de euforia. No ao vivo há, nem sei bem o que chamar-lhe, uma joy em estar a fazer música com pessoas. Que raio de disco: pega no que foi uma procura solitária e transforma-a numa celebração”.

Mathew Houck sabe bem o que é a solidão – e a celebração da tristeza ou todas as formas possíveis de a afugentar. Este nativo do Alabama, radicado na zona de Nova Iorque, antes de, recentemente, assentar em Nashville, passou anos a tentar escapar aos seres humanos normais, providenciando que – por via de shots de tequilla e muita cocaína – o seu cérebro nunca parasse para pensar que o problema pudesse estar nele.

“Não sei, meu, não sei”, diz-nos Houck, quando lhe perguntamos porque raio andou tantos anos à deriva e como raio é que dá por si agora, após uma década a fazer discos a que ninguém ligava nenhuma, como raio dá por si agora a desempenhar o papel de semi-estrela country, a dar entrevistas ao telefone enquanto trata da sua bebé de seis meses. Que raio, Mathew, digo-lhe, “tínhamos esperanças que nunca atinasses, que fosses o gajo que nunca assentava, que nunca casava, que morria na sarjeta, tínhamos planos tão bonitos para ti”.

Ele ri-se, é um tipo com bom humor, as gargalhadas saem-lhe com naturalidade e, para quem diz, com todo o à vontade, que “se houver uma oportunidade de estar sem ver pessoas eu escondo-me logo em casa”, a verdade é que gosta de estar à palheta com desconhecidos.

“Isto é tudo muito estranho, meu”, continua Mathew. “Estou tão surpreendido como todos os outros. Honestamente, depois de acabar Muchacho”, o disco que o lançou para o estrelato, “achei que o álbum era muito inacessível. Mas não se pode pensar nessas merdas quando se faz um disco. Nem é assim tão difícil desligar esses pensamentos, porque estás concentrado no que estás a fazer. E só quando o raio do disco sai é que te sentas e pensas porque é que fizeste o que fizeste. E eu pensei que seria o mesmo de sempre: belas canções a que ninguém ligaria nenhuma”.

Houck não tem assim à mão nenhuma teoria para explicar porque é que durante anos a fio os discos que fez sob o nome Phosphorecent não granjearam reputação nem amealharam fãs. “Eu faço o mesmo que sempre fiz”, diz ao telefone, e imaginamo-lo a encolher os ombros de ar perplexo. “Admito que o Muchacho vem de um lugar especial – foi a minha forma de reagir ao lugar geográfico e mental em que estava. Mas também, para mim a escrita acontece sempre em situações especiais. Não escrevo por escrever”.

A capa de Muchacho era todo um programa – uma espécie de versão em uma só imagem (e gringa) do vídeo que os Jesus and Mary Chain fizeram para Cracking up (em que William Reid rebolava num quarto de hotel com duas garotas). À frente vê-se parte da cara de Mathew, a rir-se, de chapéu e camisa de cowboy, em fundo uma garota apenas com casaco e chapéu e uma outra, deitada nas pernas da primeira.

“Achas a capa um bocadinho exagerada?”, pergunta Mathew. Não, porquê? “Bem”, começa, “porque”, e faz uma pausa, “na realidade não é de todo exagerada”. E ri-se, claro. Houck escreveu Muchacho no México. Tinha vindo de uma digressão enorme, como sempre – se ele pudesse “estava sempre em digressão. Eu sei que me faz mal, mas há sempre alguém que me pede mais um par de datas e eu não consigo dizer que não e de repente essas duas datas tornam-se mais um par de meses e quando chego a casa estou com a vida mais em pantanas que antes”.

Foi mais ou menos o que aconteceu: quando regressou da digressão que precedeu Muchacho, Houck “não estava feliz em Nova Iorque, não estava tratar bem de [si]”. Andava a beber demasiado, havia problemas amorosos e não tinha material suficiente para um disco.

“Tentei salvar uns rascunhos de canções que tinha. Não estava muito contente com a banda. Não estava nada contente – a minha ideia era acabar com ela de vez e arranjar um emprego normal, o que me assustava porque não sei fazer mais nada e não me imagino com um emprego das nove às cinco”.

Ele não é muito claro acerca do que se passou no México. “Hum, houve a quantidade normal de tequilla”, responde, quando lhe perguntamos se ao menos começou a tratar melhor de si próprio. “Mas acho que a capa responde à tua pergunta”, atira. Raios, Mathew, foi assim tão divertido? “Bem, meu, olhando para trás até foi. Mas eu estava todo fodido. Sabes quando estás todo fodido e não consegues parar de festejar porque se parares és obrigado a olhar para ti próprio? Foi o que aconteceu”.

Houck saiu do México com uma certeza: o que quer que acontecesse, teria de ser ele e só ele a endireitar a sua vida. Teve “extremo cuidado com o som de Muchacho”, porque queria que as canções fossem ouvidas – o que não foi um processo imediato: Muchacho foi pegando devagarinho, até que de repente está (mas só agora) em todo o lado. O concerto gravado ao longo de quatro noites no Music Hall de Williamsburg foi o culminar de quase dois anos na estrada (ele não consegue vitar) e é apoteótico – o tipo de disco ao vivo que já não acontecia desde a década de 80, quando Nick Cave pregava a decadência com os Bad Seeds a seu lado.

Apesar disto, não está tudo bem: Houck sente “alguma amargura por os outros discos não terem pegado na altura certa. Talvez eu me tenha aprimorado a fazer discos, do ponto de vista técnico. Hoje em dia percebo que alguns dos discos mais antigos sejam difíceis para as pessoas – mas na altura achei que podiam ser it”.

Live at the Music Hall marca um ponto de viragem na carreira de Houck: agora ele tem uma banda. Antes chamava quem estivesse à mão para ir em digressão consigo, agora os Phosphorecent, apesar de ainda serem uma banda sua, são uma banda.

“Estavas a perguntar-me se vou usar músicos de Nashville no próximo disco? Não. Estes tipos com que andei em digressão – isto foi uma alegria tão grande que não os quero perder. Tenho umas ideias de canções e quando isto estiver mais definido vou chamá-los e fazer o disco com eles. E quero que eles dêem ideias, quero uma banda”. Para mim isto sempre foi um processo muito solitário. Desta vez tenho óptimos músicos ao meu lado.

Nunca é tarde para ser-se bom. O misantropo Michael Houck, afinal gosta de pessoas. Tem 34 anos e começou a saborear o sucesso aos 32. Ainda não sabe o que vai fazer no próximo disco, mas tem um novo mote para a vida: “Quando não sabes o que fazer, começa a trabalhar”. Nunca é tarde para ser-se bom.

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