Joaquim Bravo, a liberdade e a alegria de um auto-didacta

Uma exposição no Teatro da Politécnica, com obras inéditas e pouco vistas. A edição do documentário Joaquim Bravo, Évora 1935, Etc, Etc. Felicidades. Joaquim Bravo mostra-se de novo, com a sinceridade do seu desenho e da sua pintura.

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Passaram 25 anos depois da despedida de Joaquim Bravo (Évora, 1935-1990) e para Jorge Silva Melo, encenador e cineasta, já é muito tempo.

A ameaça do esquecimento avança a compasso da ameaça do silêncio sobre a obra do artista. Não se pode dizer que Joaquim Bravo tenha, desde então, desaparecido do circuito expositivo – houve a retrospectiva no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (2000) e uma exposição em 2004 na Galeria João Esteves Oliveira, mas um comentário afigura-se legítimo: a sua pintura e o seu desenho há muito que não encontravam o espaço e o tempo que mereciam.

Encontram-no agora, no Teatro da Politécnica, com a organização da Artistas Unidos (e colaboração de Xana), sob o título de Joaquim Bravo, de Novo. “Foi ao falar com a sua viúva [Maria de Lourdes Bravo] que nos lemnbrámos de mostrar trabalhos pouco vistos ou inéditos. E ainda há uma muitas obras por ver. Ele está muito representado em várias colecções, mas creio que caiu num certo esquecimento, vê-se pouco, como aliás o Álvaro Lapa”. Não é a nostalgia que move Jorge Silva Melo, mas um gosto que permanece jovem e as “confidências” de artistas acabados de sair de universidades e escolas de arte. “Diziam-me que nunca tinham visto, a sério, a pintura do Joaquim Bravo.Alguns viram-na agora [no Teatro da Politécnica] e ficaram agradecidos e muito surpreendidos”.

Lembrar, voltar a ver desenhos e pinturas datados dos anos 60 e 80. A surpresa dos que entrarem na galeria do Teatro da Politécnica não será, talvez, muito distinta da que o encenador experimentou no meio da década de 60. “O Bravo, com o [Álvaro] Lapa e o [António Palolo] eram três auto-didactas de Évora, que trabalhavam longe de Lisboa e das tendências que aí dominavam. E tinham um discurso absolutamente contemporâneo, muito americano. Porque eles procuravam referências e encontravam-nas. Consultavam e liam a secção de artes plásticas da “Elle” [revista feminina de moda], à procura de [Robert] Rauschenberg e do [Jackson] Pollock”.

A relação do autor de Agosto (1987) com as obras de Bravo, Palolo e Lapa tem nos documentários por si realizadas, com a produção dos Artistas Unidos, um dos seus momentos mais bonitos e generosos. “Quis mostrar esse grupo, quem foram, o que fizeram. Quis mostrar o que fez a geração mesmo antes de mim. Foi com eles que cresci e aprendi a ver pintura contemporânea. O filme sobre o Joaquim Bravo começa com o Álvaro Lapa que acompanhei bastante, e cujos depoimentos são muitos importantes”.

Joaquim Bravo, Évora 1935, Etc, Etc. Felicidades, editado esta semana pela Midas e é um complemento oportuno às visitas que a exposição acolherá. Vêem-se desenhos e pinturas, ouvem-se vozes e palavras do próprio Joaquim Bravo, da sua esposa, amigos e companheiros de percurso (Xana, Álvaro Lapa, Pedro Cabrita Reis, José Miranda Justo, Vera Gonçalves). E fotografias e outros filmes dentro do filme, que permitem espreitar uma vida feita em lugares (depois de Évora, Joaquim Bravo instalar-se-ia em Lagos), com os outros e a pintura. Jorge Silva Melo, espera, dá tempo para que todos falem, sem impor orientações, na condição de, também ele, herdeiro da vitalidade que aquele artista deixara nos seus desenhos e pinturas.

A franqueza de uma pintura
“Não conheci pessoalmente o Joaquim Bravo”, ressalva o cineasta, “mas vi a sua exposição na Galeria 111, em 1964, a primeira que o Rui Mário Gonçalves e o António Areal organizaram com os três artistas de Évora. E acompanhei a recepção que as suas exposições tiveram em 1986 na Galeria EMI

Valentim de Carvalho e, um ano depois, na Loja de Desenho. A sua produção de desenho era incessante, avassaladora. Ele desenhava muito”. O reconhecimento definitivo chegaria exactamente nessa época, com um sucesso comercial que não mudou a personalidade do artista. “Ele era um homem muito reservado em relação ao seu sucesso e à vida mundana no mundo da arte, mas muito caloroso com os amigos, uma figura solar, dionisíaca, ávido de partilhar as suas coisas com os outros. Era um homem de uma cultura intensa também. Tinha uma biblioteca pequena, mas lia repetidamente todos os seus livros”.

No Teatro da Politécnica é possível, mesmo sem o visionamento do filme, imaginar esse artista e até vislumbrar a presença de motivos (barcos, figuras humanas, casas) que apontam para lugares, ambientes e contextos históricos a que ele não foi alheio. Falamos de Évora, do mar, sol e da praia de Lagos, da guerra colonial (na série Angola é deles), mas ao espectador faltam palavras que componham uma descrição justa do que vê. Falar da relação entre o gestualismo e a contenção do traço, da tensão entre as formas geométricas e a cor (sempre discreta, mas intensa), entre a pintura e o desenho, não basta para dar sentido à perturbação alegre que elas provocam. “É muito difícil escrever sobre a pintura do Bravo. É uma lição de liberdade, porque é anti-autoritária. Ele foi fazendo como queria, como desejava, segundo a sua vontade. Sem qualquer pressão ou orientação comercial. O seu trabalho nasce de um pensamento pictórico. É cerebral e tumultuoso”.

Por isso, enfatiza Jorge Silva Melo, é tão difícil escrever sobre o que Joaquim Bravo nos deixou. Talvez escrever com os olhos. “Sim, é quase uma escrita. A sua pintura é muito substantiva, muito afirmativa e evidente, não deixa dúvidas. Penso nele muitas vezes a ver se encontro a linha mais curta”. Em Joaquim Bravo, de Novo sobressai, também, outro elemento: a alegria. “Ele fez cenários para teatro escolar, para os miúdos. Como professor ou artista, nunca se coibiu de impor a alegria à sua actividade”. Onde encontrá-la nas paredes da exposição? Nas linhas, nas cores, no movimento dos traços, no fundo, no azul das manchas. Percebe-se que a par da concentração, de um envolvimento de uma pintura pela pintura, para os outros artistas, existia também um júbilo. “Quando estava à procura de um título para o documentário, pensei em ‘ A Marca de Bravo’, pela sua influência sobre os artistas, mas depois decidi-me por Joaquim Bravo, Évora 1935, Etc, Etc. Felicidades, frase que ele deixou escrita numa carta de despedida antes de falecer em 1990”. Alegria, franqueza, pintura. A obra de Joaquim Bravo existe para lá das frustrações da internacionalização da arte portuguesa e do culto do “novo”.

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