Seis Nações: Cinco ideias após a primeira Jornada

As lesões deram uma preciosa ajuda a Stuart Lancaster na ronda inaugural onde o modelo de Warren Gatland voltou a ser questionado

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1 - A ironia de Stuart Lancaster

É injusto criticar um homem que levantou a selecção Inglesa das ruínas de uma participação modesta dentro de campo, e vergonhosa fora dele, no Mundial 2011, mas não é descabido pensar que se não fossem as lesões, Lancaster jamais escolheria Jonathan Joseph. Após dois anos de Tuilagui, Barritt e Burrell, sobrou Joseph, o 13 em melhor forma em Inglaterra e na “Champions Cup” (curiosidade: deve a sua estreia de rosa ao peito na África do Sul, em 2012, a uma lesão de Barritt). Fisicamente menos poderoso que os três que o antecederam, Joseph tem uma característica que os outros não têm: capacidade de procura e utilização do espaço, fruto de aceleração, velocidade e um je ne sais quoi muito francês que designamos de flair.

As lesões condicionaram, e muito, as escolhas de Lancaster nesta ronda: Attwood, Kruis e Haskell, todos eles com exibições elogiadas no “pack”, também figuraram devido a lesão de outros. Mas neste facto não se vislumbra mais que a habitual exigência que o “8 da frente” domine a colisão e assegure posse de bola de qualidade. Lá atrás, junta-se a Joseph a selecção de Ford e Cipriani, os “10” titular e suplente, mas apenas em resultado da lesão do robótico e defensivamente competente Farrell. O destino tem destas coisas. Sem fazer uma exibição de gala, os três-quartos ingleses tiveram o condão de aproveitar os erros/oportunidades – George North ainda terá pesadelos com o ensaio de Joseph, o passe de Burrell e leitura/pontapé de Brown cintilantes no ensaio de Watson – e Ford foi exímio na variação, primeiro centrada na ocupação do terreno ao pé e depois no aproveitamento da menor velocidade de linha defensiva galesa e consequente espaço disponível. Por agora, os virtuosos (que incluem o fabuloso Watson e o imponderável May nas pontas) ganharam direito a mais uma volta. Se continuarem a vencer, será que Lancaster vai finalmente ceder e escolher os melhores atacantes em detrimento dos mais sólidos defensores? Será que o jogo Inglês vai finalmente deixar de ser uma sequência ad nauseum de formas e estruturas, para ser montado em princípios e acção/reacção perante a oportunidade concreta?

2 - E sobram dois. Será?

Parece que a honra da vitória recairá sobre Inglaterra ou Irlanda. Será? A Irlanda terá ainda de jogar contra o País de Gales, em Cardiff, e com a renovada Escócia, em Murrayfield; a Inglaterra tem visita agendada com a Irlanda, em Dublin. Uma coisa parece certa: à França falta tudo para ganhar consistentemente, e poderá ser a Escócia, provocando uma surpresa, a entregar o campeonato a uns ou outros. Inclusivamente ao País de Gales, que em 2013 venceu depois da derrota caseira e ignóbil frente à Irlanda. O grande teste Inglês será em Dublin, onde acredito que a Irlanda possa dar impulso decisivo à dobradinha.

3 – “Warrenball” e o Plano B – a repetição do argumento

Elogiou-se o “Warrenball” quando os “Lions” venceram na Austrália. Retomou-se o epíteto, para criticar a essência, quando a Irlanda venceu em 2014 um País de Gales irreconhecível. E recupera-se agora o tema, por se pretender que o modelo de Gatland está esgotado, não apresentando alternativa eficaz. É indesmentível que o jogo de “breakdown” de Gatland, que deve quase tudo à intensidade louca de Shaun Edwards, conheceu o seu auge antes das imposição da lógica da penalidade, que obriga o placador e assistente a largar placado, para depois disputar a bola. Esta alteração teve também impacto no jogo ao pé, outrora uma das grandes armas galesas. Na verdade, Gatland advogava que existindo a probabilidade da equipa atacante conceder uma falta no chão (nas anteriores leis, a ênfase estava na libertação da bola pelo portador placado), mais valia chutar a bola para dentro de campo e fazer pressão diabólica defensiva, confiando que a defesa e um 7 de classe mundial ganhariam a bola ou uma penalidade. Desde a alteração na lei, o jogo ao pé das equipas de Gatland ainda não se encontrou: sempre que chuta, Gales perde a bola, não cria pressão e não ganha terreno.

Gatland acredita em 3 máximas: (I) manter o sentido do ataque (por isso precisa de grandes carregadores de bola em quase todas as posições; (II) defesa “blitz” (basta olhar para o posicionamento dos pontas e do 15, bem como para a velocidade de linha); (III) jogo ao pé para dentro de campo. Contra esta receita, as equipas procuram perturbar o jogo logo na fase de conquista da bola. Por isso veremos, cada vez mais, a intenção de perturbar a conquista na formação ordenada e no alinhamento. Acresce que as equipas respondem com brutalidade à brutalidade, e Gales perde a reciclagem de bola rápida que confere espaço aos seus centros e pontas para jogarem “à galesa”. Fala-se em baixa de forma dos três-quartos galeses, mas seria mais correcto falar em falência circunstancial do modelo de jogo. Que poderá ressuscitar, sempre que o “pack” se impuser. Mas apenas neste caso, o que poderá ser insuficiente para ambições maiores.

4 - Os impressionantes e irrelevantes números italianos

O fantástico mundo da estatística diz-nos que os italianos são os melhores placadores das Seis Nações, ou pelo menos os mais generosos. Contra a Irlanda, encaixaram 198 placagens, apresentando uma taxa de sucesso de 92%. Um registo que empalidece apenas na comparação com as 245 que fizeram em 2014, contra mesma Irlanda. Mas esta Itália combativa só placa porque está constantemente sem bola, e questiona-se até a vontade intrínseca que tem de a ter, a ambição que tem de a utilizar. A placagem tornou a Itália competitiva e Brunel parecia o homem certo para progredir o paradigma herdado de Mallett. Mas o processo estagnou. Hoje poderá argumentar-se, simplisticamente, que é a placagem – juntamente com as fases estáticas – que limita a Itália a ser apenas isso mesmo: competitiva. Será a qualidade na utilização da bola que transformará a Itália em algo mais que uma equipa intensa, que perde inevitavelmente nos últimos 20 minutos dos jogos a doer.

5- Construir ou aproveitar? Mapa para o sucesso

Qual a diferença entre o ensaio de Dougie Fife e o ensaio de Rhys Webb? O ensaio escocês foi construído, no sentido em que resulta de algo que foi trabalhado, pensado, previsto, treinado. A Escócia montou, sucessivamente e sobre pressão, a sua estrutura a partir do 9, insistindo no sentido de ataque e concentrando inevitavelmente a defesa. Com a oportunidade geometricamente delineada, decidiram colectivamente aproveitar o espaço e superioridade numérica no lado aberto, demonstrando capacidade de execução sob pressão extrema da linha defensiva. É um pilar quem faz o passe decisivo para Fife marcar na ponta. Uma sequência que materializa os princípios de jogo, assente em estruturas bem montada que permitem aos jogadores implementar o plano, mediante técnicas de execução irrepreensíveis (algo que não sucedeu no resto do jogo). Aplauso para Vern Cotter.

Inversamente, o ensaio de Webb resulta, em primeira análise, de um pequeno milagre operado por Faletau, que com a formação ordenada em “marcha-atrás”, consegue agarrar a bola, sair em progressão e transmiti-la, apertado, ao explosivo Webb. Mas resulta também, cruamente, de um erro grosseiro e inaceitável de Haskell, que consegue a proeza de nem sequer tentar a placagem, e de uma incompreensível incapacidade para a matemática de May, que sendo o último homem na linha não percebeu que a Inglaterra tinha superioridade defensiva (Haskell + Ford + May vs Faletau + Webb) , deixando-se chamar para o penúltimo homem. O mesmo poder-se-á dizer do ensaio de Joseph, que parado consegue deixar Biggar sentado (erro técnico inaceitável a este nível) e, em corrida lateral positiva, afasta sem grande esforço a patética tentativa de placagem de North, e ainda de Webb.

Ensaio é ensaio e vale 5 pontos. Mas dará mais descanso ao homem do leme um ensaio construído, do que um consentido, simplesmente porque contra os melhores será melhor assumir que é necessário construir.

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