Tribunal Europeu critica Supremo por decretar regresso de criança a Chipre

Juízes dizem que o Estado português violou direito ao respeito pela vida familiar.

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Depois da decisão do Supremo, Elizabeth regressou com a filha a Moçambique. Adriano Miranda

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) condenou o Estado português por violação do direito ao respeito pela vida familiar, devido a uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que decretou, em Abril de 2011, o regresso de uma criança a Chipre, onde vivia o pai.

O Supremo decretou o regresso da criança, hoje com oito anos, sem analisar devidamente se existia “risco grave” de esta ficar sujeita a “perigos de ordem física ou psíquica”, dita o acórdão, da última quinta-feira. Era o que argumentava a mãe, que em Setembro de 2009 veio de férias a Portugal, de onde é originária, e optou por ficar com a filha, cancelando a viagem de regresso a Chipre contra a vontade do pai.

O TEDH aceita que a criança foi retida em Portugal de forma ilícita – as responsabilidades parentais eram exercidas por ambos e foi sem o acordo do pai que a mãe decidiu não voltar a Chipre – e refere que a regra, nestes casos, é ordenar o regresso do menor ao Estado onde residia. Lembra, contudo, que esse regresso não deve ser ordenado de forma “automática e mecânica”, já que a própria Convenção de Haia que regula o rapto internacional prevê excepções: o regresso não pode pôr em causa o bem-estar da criança.

O Tribunal de Família e Menores de Coimbra, o primeiro a analisar o caso, dispensou o relatório social sobre o pai e não ouviu qualquer testemunha por ele arrolada. A avó e a técnica da Equipa Multidisciplinar de Apoio ao tribunal fizeram a defesa da mãe. Mesmo assim, o tribunal fez uma aplicação da regra prevista na Convenção de Haia: se um pai levar um filho para fora sem autorização do outro titular da guarda, o tribunal do país de destino deve decretar o regresso da criança ao Estado onde residia.

O TEDH lamenta que as três instâncias que analisaram o caso em Portugal tenham tomado decisão com base em “poucos elementos de prova”. Os juízes constatam que “nenhum elemento no processo permite determinar qual era a situação da criança em Chipre, antes de se mudar”, como admitiu até o procurador no Tribunal da Relação, que ao contrário dos outros dois não determinou o regresso da criança a Chipre por considerar que tal poderia colocá-la em perigo. “As várias jurisdições não consideraram necessário pedir à autoridade central cipriota informações sobre a situação do pai da criança e sobre a sua eventual incapacidade em tomar conta da filha”, lamentam os juízes.

Era em Moçambique que a família vivia até 2007. Segundo a mãe da menina, os três mudaram-se para Chipre por terem receio de que o companheiro fosse preso. Ela apresentou uma cópia de um mandado de captura por crimes não relacionados com o caso emitido a 11 de Março de 2010 pelas autoridades moçambicanas. E ao recurso apresentado na Relação de Coimbra juntou também um relatório de um psicólogo que alerta para o risco de a criança ficar traumatizada com a separação da mãe. “O acórdão do Supremo de 14 de Abril de 2011 não faz qualquer referência aos elementos apresentados pela mãe no seu recurso”, criticam os juízes do tribunal europeu.

Os magistrados do tribunal europeu enfatizam a importância do factor “tempo” nestes casos, lembrando que a própria Convenção de Haia prevê que, passado um ano, a ordem de regresso pode não ser executada, se a criança estiver integrada no seu novo meio. O TEDH nota que entre a primeira decisão do Tribunal de Família e Menores de Coimbra, de 14 de Janeiro de 2010, e o acórdão do Supremo que põe um ponto final no caso, passaram “um ano, seis meses e 10 dias”, o que “parece excessivo face à urgência inerente a esta matéria”. Por isso, o TEDH considera que “a duração do procedimento pode ter causado mudanças na situação da criança, especialmente quando esta já parecia bem integrada no seu novo ambiente e na sua escola na data do relatório social, a 5 de Janeiro de 2010”.

Apesar de dar razão à mãe, o TEDH recusa atribuir-lhe a indemnização de 50 mil euros por danos morais. Condena apenas o Estado português a reembolsar os 795 euros gastos em taxas de justiça. A decisão do TEDH não foi consensual, tendo cinco juízes votado a favor e dois de forma contrária. Para estes cabia à mãe da menina provar que não havia condições para a menina voltar ao Chipre.

Mãe e menina regressaram a Moçambique
Antes da decisão do Supremo Tribunal de Justiça transitar em julgado, a mãe comprou dois bilhetes de avião, fez as malas, pegou na filha e viajou até Maputo. Moçambique não assinou a Convenção de Haia, que regula os aspectos civis do rapto internacional de crianças.

A menina nasceu na África do Sul. Foi registada como nacional de Moçambique. Viveu em Maputo até, em Dezembro de 2007, a família se mudar para o Chipre. O pai, que era só sul-africano, tornou-se também cipriota em Janeiro de 2008. Três meses depois, a filha também.

A 1 de Setembro de 2010, a mãe aterrou em Portugal. Vinha com a filha visitar a família. Volvidos 15 dias, telefonou ao companheiro a anunciar que não regressaria. No dia seguinte, cruzou a porta do tribunal de Cantanhede e pediu ao Ministério Público para regular as responsabilidades parentais. Cinco dias depois, no Chipre, o companheiro queixou-se de rapto internacional. A sua queixa tinha cabimento na Convenção de Haia, segundo a qual, sempre que alguém leva um filho para um Estado que não o de residência habitual, sem autorização do outro titular da guarda, o tribunal do país de destino deve decretar o regresso imediato da criança.

 O tribunal ordenou o regresso imediato da criança a Chipre. A mulher desrespeitou a ordem judicial para entregar a criança. O tribunal emitiu um mandado de condução. Ela recorreu à Relação. Reclama uma das excepções que a convenção admite à ordem de regresso: perigo para a criança. A Relação revogou a decisão. O Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal.

A expectativa dela era que o processo baixasse à primeira instância para que se averiguassem as condições objectivas em que vivia o pai. Não aconteceu. O Supremo ordenou o regresso imediato. Antes de a decisão transitar em julgado, a mãe pegou na filha e viajou até Moçambique, onde a Convenção de Haia não se aplica.

O companheiro assinara várias autorizações para viajar sem data. O tribunal que regula as responsabilidades parentais é o da zona de residência da criança. A mãe pediu ao tribunal que o fizesse. E o tribunal decidiu atribuir-lhe a guarda, conferindo ao pai o direito de estar com a filha, de modo periódico. Ao que foi possível apurar, vivem agora todos em Moçambique.

Foi avisado o Tribunal de Coimbra, que suspendeu o processo de regulação de responsabilidades parentais, quando deu entrada o processo de rapto internacional. Mantem-se, no entanto, activo a mandado de captura internacional e a ordem para a mãe entregar a criança ao pai em Chipre.

As advogadas da mãe ainda estudam o que fazer com a decisão do TEDH. O que pretendem é que seja levantada a ordem de captura internacional. Só assim, a mãe pode voltar a visitar a família em Cantanhede.

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