Portugal não aderiu à moda antivacinação, mas as autoridades estão atentas

As autoridades de Saúde estão satisfeitas com as taxas de vacinação em Portugal, onde as correntes anti-vacinação têm pequena expressão. Infantários e escolas têm um papel importante no cumprimento do Programa Nacional de Vacinação.

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Adelaide Carneiro/Arquivo

Desde o passado mês de Dezembro registaram-se mais de 100 casos de sarampo nos Estados Unidos, tendo a maior parte surgido por contágio no parque de diversões Disneylândia. Este surto atinge sobretudo indivíduos não vacinados. O sarampo é evitável pela vacinação e esta semana o próprio Presidente, Barack Obama, apelou à vacinação das crianças.

As autoridades de Saúde em Portugal estão atentas aos movimentos antivacinação e ao reaparecimento de algumas doenças evitáveis pelas vacinas que se tem observado nos EUA e em alguns países da Europa. Atentas, mas não muito preocupadas. "As nossas taxas de cobertura vacinal são de cerca de 97%, valores dos quais nos orgulhamos muito. É das melhores coberturas vacinais da Europa”, diz Etelvina Calé, que acompanha de perto esta questão como consultora e membro da Comissão Técnica de Vacinação da Direcção-Geral de Saúde (DGS).

A última avaliação anual feita pela DGS mostra que no ano de 2013 o cumprimento do esquema de vacinação recomendado se situou entre 94% e 99%, dependendo da vacina e do grupo etário em avaliação. A vacina contra o vírus do papiloma humano (HPV) tem uma taxa mais baixa, 85%, o que mesmo assim "é um valor óptimo, tendo em conta que só recentemente foi introduzida no Programa Nacional de Vacinação (PNV)", explica Etelvina Calé.

A grande adesão à vacinação em Portugal permitiu a eliminação de várias doenças graves, diz Manuel do Carmo Gomes, epidemiologista e membro da Comissão Técnica de Vacinação da DGS. "Portugal é um óptimo exemplo de redução significativa da mortalidade infantil em resultado da vacinação. Antes da vacinação em massa, que se iniciou na década de 1960, muitas das crianças com menos de um  ano morriam de doenças infecciosas transmitidas por pais e familiares. Nos últimos anos, os casos confirmados de sarampo têm sido pouquíssimos e são de pessoas que vieram do estrangeiro. Hoje não há difteria nem poliomielite, mas na década de 1950 a difteria atingia 30 pessoas por 100 mil habitantes.”

Vacinas, imunidade de grupo e bolsas de susceptíveis
De acordo com os especialistas, as boas coberturas de vacinação são importantes porque as vacinas não só conferem imunidade individual a quem a recebe, como contribuem para a chamada “imunidade de grupo” — uma doença não pode invadir uma população, se houver uma elevada percentagem de indivíduos vacinados, explica Manuel do Carmo Gomes. "Os valores da cobertura vacinal necessários para se obter imunidade de grupo são determinados por modelos matemáticos e variam de acordo com as doenças e as características de transmissão específicas da comunidade em estudo." No caso do sarampo, por exemplo, se 97% da população estiver vacinada e os restantes 3% espalhados homogeneamente, o vírus do sarampo não invade a população. O caso do tétano constitui uma excepção: a vacina apenas confere protecção individual, relembra.

A imunidade de grupo também protege indirectamente as pessoas não imunizadas, ou seja, as não vacinadas e as que foram perdendo a imunidade ao longo do tempo. Há ainda as que foram sujeitas a programas de vacinação menos completos em criança e não tiveram contacto com a doença. Muitas das pessoas que hoje têm 40 anos, por exemplo, são um grupo susceptível em caso de surto de sarampo, porque receberam menos uma dose da vacina do que a actualmente aconselhada e nunca estiveram expostas à doença.

Há pessoas que não podem receber certas vacinas, ou mesmo nenhuma, por motivos de saúde, como é o caso de doentes oncológicos, imunodeprimidos ou que fizeram um transplante. "Todos eles continuam protegidos, se a restante população estiver protegida", diz a pediatra Catarina Gouveia, membro da Comissão de Vacinas da Sociedade de Infecciologia Pediátrica/Sociedade Portuguesa de Pediatria. "O problema são as bolsas de susceptíveis", explica, referindo-se aos locais em que a cobertura vacinal é inferior à necessária para se obter imunidade de grupo.

Embora em Portugal a adesão à vacinação seja elevada, há excepções. Para além dos raros casos de contra-indicação médica, há quem não vacine os filhos pelas mais variadas razões. No caso de recusa, os centros de saúde pedem aos pais que assinem um termo de responsabilidade e esta informação é registada na ficha da criança.

As autoridades estão atentas aos movimentos antivacinação. "É uma posição muito confortável e quase egoísta não vacinar os filhos numa comunidade onde as taxas de cobertura vacinal da população são superiores a 90%”, diz Etelvina Calé. Mas, se as taxas de vacinação diminuírem, "o fenómeno da imunidade de grupo perde-se e pode vir a acontecer o mesmo que se passou noutros países da Europa, onde recentemente ocorreram surtos de doenças evitáveis pela vacinação — a imunidade de grupo não funcionou".

O papel das escolas
As equipas de saúde escolar devem ter conhecimento do estado vacinal das crianças para, no caso de reaparecimento de alguma doença, poderem avaliar a probabilidade de ocorrência de um surto, explica Etelvina Calé. Na prática, as escolas fazem isto ao verificar o boletim de vacinas no momento das matrículas.

O procedimento habitual das escolas públicas é o de fazer o controlo do boletim de vacinas no momento de entrada no agrupamento escolar. Depois a matrícula é automática, mas o boletim volta a ser pedido nas mudanças de ciclo. No Agrupamento de Escolas André Soares, em Braga, por exemplo, este controlo é feito "por uma questão de saúde pública", como explica Ana Paula Saraiva, coordenadora do projecto de promoção e de educação para a saúde.

Escolas internacionais que recebem crianças de muitos países, com planos de vacinação diferentes dos portugueses, verificam as vacinas de acordo com as recomendações portuguesas. No St. Dominic’s School, em São Domingos de Rana, a directora administrativa Maria Teresa Cruz explica que promovem a vacinação "pela protecção de toda a comunidade escolar".

Muitas escolas particulares exigem o boletim em dia. É essa a orientação da Oeiras International School, por exemplo. "Exijo oficialmente as vacinas do Programa Nacional de Vacinação em dia", afirma a directora, Chari Empis. Maria da Paz Correia, enfermeira da escola, explica que "a posição da escola é proteger os alunos como um todo".

No caso da inscrição de uma criança não vacinada, é geralmente pedido aos pais um atestado médico ou um termo de responsabilidade. Berta Brito, directora do Externato Carolina Michaelis, em Lisboa, onde é exigido o boletim de vacinas em dia, conta um caso desses: "Há uns anos tivemos quatro irmãos que não eram vacinados por motivos religiosos. A família entregou-me um termo de responsabilidade, que na altura enviei para a DREL.”

No entanto, algumas escolas não exigem o boletim de vacinas em dia por considerarem que não devem tomar posição em relação à vacinação, embora possuam cópia do boletim no processo da criança. No Jardim de Infância S. Jorge, em Lisboa, "a vacinação não é um critério para a admissão", afirma Paula Martinez, a directora. 

É semelhante o procedimento actual na escola Os Aprendizes, em Cascais. A directora da escola, Sofia Borges, conta que "quando a escola abriu exigia a vacina do tétano e da difteria, mas, depois de receber uma aluna que não estava vacinada por razões médicas, incluí no regulamento interno a não obrigatoriedade de vacinar, por não ser obrigatório por lei".

Algumas escolas seguem princípios próprios. A Escola Livre do Algarve, em Vila do Bispo, "não tem qualquer posição acerca deste assunto [vacinação]", afirma João Ferreira, o director. "A antroposofia, base sobre a qual a nossa pedagogia assenta, quando aplicada na medicina, tem uma opinião muito própria sobre as vacinas. Embora a escola não tome qualquer partido, respeitando neste aspecto os valores de cada um, grande parte das nossas crianças não são vacinadas." Nestes casos, explica, os encarregados de educação entregam uma declaração, responsabilizando-se pela decisão.

Há ainda alguns raros casos em que o boletim de vacinas não é pedido na matrícula. Leonor Malik, responsável pela associação Harpa, sede da escola Jardim do Monte, em Alhandra, também ligada ao movimento Waldorf, conta:  "Enquanto escola não temos formalmente nenhuma posição explícita relativa à vacinação. O movimento pedagógico Waldorf, cujos fundamentos decorrem da antroposofia, está ligado à medicina antroposófica, que se apresenta consciente dos perigos, das eventuais vantagens e das dúvidas que subsistem relativamente às vacinas. Quer isto dizer que algumas das nossas crianças efectivamente não são vacinadas por opção dos pais." Dentro desta orientação, têm-se realizado na escola sessões de esclarecimento com uma médica antroposófica sobre os alegados perigos e eventuais vantagens da vacinação.

As situações em que não há controlo do boletim de vacinas são pontuais. A maioria das escolas assume um papel importante no cumprimento do PNV e, como o programa de vacinação inclui várias vacinas administradas em diferentes idades, a verificação do boletim de vacinas no início do ano lectivo funciona muitas vezes como lembrete para os encarregados de educação.

No entanto, embora a grande maioria das crianças esteja vacinada, algumas escolas têm uma taxa de vacinação muito inferior à média do país. Há casos pontuais em que só 20%-40% dos alunos inscritos cumprem o PNV. Manuel do Carmo Gomes considera estes valores muito altos. "Isto cria um risco de surto de doença. Um grupo não vacinado pode permitir a ocorrência de um surto e transmitir a doença a indivíduos não vacinados ou não imunizados", diz.

O que diz a lei, afinal?
Actualmente o PNV constitui uma “recomendação” das autoridades de Saúde. Existe um decreto-lei de 1962 que determina a obrigatoriedade das vacinas do tétano e da difteria, mas que segundo Etelvina Calé é considerado como “não vigente”, ou seja, não está em aplicação. E acrescenta: "O PNV é uma recomendação, mas a DGS aconselha vivamente que as pessoas se vacinem."

"As pessoas têm o direito de optar. Nós primamos para que a vacinação seja feita o mais conscientemente possível e o mais livremente possível. Temos taxas de vacinação elevadas graças aos esforços efectuados pelos profissionais, especialmente os de enfermagem, para explicar os benefícios da vacinação e graças ao constante trabalho de educação para a saúde e monitorização. As pessoas vacinam-se e vacinam os filhos pelos benefícios de saúde que daí advêm e por perceberem a importância da vacinação", conclui Etelvina Calé.

"Não sendo a vacinação obrigatória, uma escola pública não pode recusar admitir uma criança não vacinada", explica Paula Martinho da Silva, advogada e membro do Grupo Europeu de Ética. E observa: "Não sendo obrigatória, não há consequências legais para a decisão de não vacinação, embora em abstracto se possa falar em responsabilização, se um indivíduo não vacinado contagiar outro."

As medidas de saúde só são tornadas obrigatórias quando existe risco importante para a saúde pública, ou risco de vida, explica a pediatra Catarina Gouveia. "As vacinas destinam-se a prevenir doenças." Salienta, contudo, a importância da vacinação: "A seguir ao acesso a água potável, a vacinação é a medida de saúde pública que mais vidas salva."

Texto editado por Lurdes Ferreira

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