Auschwitz: a memória do horror não prescreve

O horror nunca teve, como os iogurtes, um prazo de validade.

No dia 1 de Outubro de 1975, com Portugal a viver momentos de grande tensão e conflitualidade militar e política que muitos consideravam sinais anunciadores de uma inevitável guerra civil que felizmente não eclodiu, começou a visita oficial do Presidente Francisco da Costa Gomes à Polónia e à União Soviética, que incluía, no primeiro dos países, uma visita ao campo de concentração e extermínio de Auschwitz.

Fiz essa viagem como enviado do Diário de Notícias. Nessa altura poucos portugueses tinham tido oportunidade de visitar o espaço de horror onde o genocídio hitleriano custara a vida a centenas de milhares de judeus, ciganos, testemunhas de Jeová e resistentes políticos, entre outros. A visita foi feita com grande emotividade e tensão, atitude e estado de espírito normais em quem vinha de um país atormentado por quase cinco décadas de ditadura.

Em Auschwitz muito se viu e testemunhou, mas pouco foi dito, que o tempo não era favorável a comentários políticos, sobretudo num contexto tão adverso e trágico. Nos que então lá estiveram não se apagou essa recordação dolorosa sobre a qual muito se falou durante o resto da viagem, até ao regresso a Lisboa. Tive ocasião de anunciar, na primeira página do Diário de Notícias, que Leonid Brejnev e Podgorny tinham aceitado o convite de Costa Gomes para visitar Portugal, visita que não se concretizou, até porque poucas semanas mais tarde o 25 de Novembro viria a mudar a História contemporânea portuguesa, tão marcada pelas forças políticas e militares à beira de um dramático confronto. O bom senso e a coragem política de Francisco da Costa Gomes foram fundamentais para que um país saído de 13 anos de Guerra Colonial não se afundasse numa guerra civil de consequências imprevisíveis.

A visita a Auschwitz reforçou nos membros da comitiva, que integrava militares preponderantes na vida política portuguesa, com destaque para os associados aos Grupo dos 9, a ideia de que não há nada mais difícil de apagar que o horror humano quando a História o regista e consagra.

Nem aquilo que vimos em Moscovo e Leninegrado, com destaque para os lugares míticos da Revolução de Outubro, bastou para que na memória da comitiva se esquecesse o horror de um campo que ficou indissociável do extermínio de seis milhões de judeus. Ali percebemos de que forma a vida humana, que o italiano Primo Levi, em Se Isto É Um Homem e noutros impressionantes livros de testemunho sobre a sua experiência como prisioneiro de Auschwitz, soberbamente narrou. E recorde-se que Levi acabou por se suicidar atirando-se do quarto andar da sua residência em Turim, por não conseguir suportar a recordação da morte e do horror a que sobreviveu mas que deixou um rasto de sangue e horror na sua memória magoada.

Todas essas páginas, memórias e personagens, de Primo Levi a Paul Celan, passando por Anne Frank, estiveram bem presentes no ciclo evocativo dos 70 anos da libertação de Auschwitz. Recordámos o luto de décadas, o terror e o medo e sobretudo não conseguimos evitar uma reflexão sobre os medos que atormentam a Europa de hoje e que vão do terrorismo até ao neonazismo que vindo de várias cidades do Leste, com destaque para Dresden ou Leipzig, mostra que o terror da II Guerra Mundial pode encontrar novas configurações para, com o tempero trágico da xenofobia e do ódio racista, voltar a fazer pairar sobre este continente inseguro e divido a asa negra dos medos que não prescrevem, nem mesmo no calendário das mais elevadas intenções políticas e humanitárias. O ódio deixou sementes e raízes e pode encontrar um terreno favorável para renascer e se multiplicar se a barreira da cidadania não for suficientemente forte para fazer prevalecer os valores da compreensão, da convergência e do diálogo.

Nunca esqueci essa visita a Auschwitz que despertou em mim um profundo interesse pelo Holocausto e me levou a visitar outros campos de concentração e extermínio, de Terezin a Buchenwald. Em 1999, durante a capital Europeia da Cultura de Weimar, cidade fundamental na história da Alemanha, visitei o campo de concentração de Buchenwald, onde existia a árvore à sombra da qual Goethe lia e escrevia e que entretanto foi derrubada pelos nazis. Nesse campo edificado na primeira metade dos anos 30 do século passado estiveram grandes figuras da resistência europeia, como Jorge Semprun, e foi executado Ernst Taelmann, secretário-geral do Partido Comunista Alemão, cujo guarda-costas, em meados dos anos setenta do século passado, ainda consegui entrevistar em Hamburgo, fascinado com a sua prodigiosa memória.

O que melhor recordo dessa visita foi a reacção agressiva e intimidatória de jovens alemães vindos de Lepzig e Dresden que tentavam ridicularizar o nosso respeito silencioso e compenetrado junto do monumento minimalista, com uma placa metálica com a temperatura de 37 graus que evocava todas as vítimas do horror e que tinham em comum a mesma temperatura da pele, fosse qual fosse a sua idade ou a sua origem étnica. No ódio que havia nessas palavras e nesses olhos em que o humanismo não encontrara guarida estava a convicção de que o horror de Auschwitz estava longe de ser um capítulo encerrado da História contemporânea da Europa e do mundo.

Olhando Auschwitz há pouco mais de 40 anos ou Buchenwald ou Bergen-Belsen nos dias de hoje é ouvir uma estridente sirene de alarme a dizer-nos que há sempre ódio e ressentimento bastantes para que as armas da destruição e do medo possam voltar a atormentar e a manchar tragicamente as nossas vidas.

Esta recordação viva e tocante de há décadas não é um monumento inabalável nem um muro que nos separa para sempre do horror já passado. O horror nunca teve, como os iogurtes, um prazo de validade.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

 

Sugerir correcção
Ler 2 comentários