Allah über Deutschland? A Alemanha entre o fascínio e a rejeição do Islão

Escavar nas ideias políticas traz muitas surpresas e levanta questões perturbadoras que julgávamos enterradas na história do século XX.

1. Nos últimos meses a Alemanha surgiu na linha da frente dos movimentos anti-islamização da Europa. Nascido em Dresden, no leste do país, o PEGIDA (em alemão “Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes”/Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), organizou nos últimos meses manifestações públicas em cidades alemãs que lhe deram visibilidade mediática.

O movimento protesta contra várias políticas governamentais, especialmente em matéria de emigração, bem como contra o que considera ser a progressiva islamização da Alemanha e do Ocidente. Embora não sejam muito claras as suas origens, o movimento parece ser uma amálgama de membros de grupos de extrema-direita – eventualmente com simpatias ou até conexões pró-nazis –, da direita populista anti-União Europeia, bem como de muitos cidadãos comuns por motivações variadas. O seu principal líder, Lutz Bachmann, renunciou ao cargo em meados de janeiro de 2015, após ter aparecido uma fotografia sua, nas redes sociais, onde este se fantasiava de Adolf Hitler. Pouco depois, Kathrin Oertel, a porta-voz do PEGIDA, renunciou também, invocando prejuízos pessoais e profissionais, devido à hostilidade que estava a ser alvo nos media. Avaliada pelas manifestações, a força principal do PEGIDA parece estar nos territórios da antiga Alemanha de leste (ex-República Democrática Alemã), absorvida em 1990 pela República Federal da Alemanha. Curiosamente, ou talvez, não, nessa parte da Alemanha há muito menos emigrantes que nos Estados federados do ocidente, mais prósperos e populosos. Não é claro, nesta altura, se a demissão de parte importante da sua liderança será o princípio do fim do movimento, ou apenas um episódio no seu percurso. Do ponto de vista político-ideológico (e da história conturbada da Alemanha dos último século), o surgimento do PEGIDA levanta uma interrogação perturbadora: será que estamos a assistir ao ressurgir dos fantasmas da Alemanha nazi (1933-1945)? Sendo o assunto delicado e complexo, vou analisar apenas um aspeto específico e pouco conhecido desse passado, que é o das relações entre a Alemanha e o Islão no período nazi, em especial durante a II Guerra Mundial. Faço-o, essencialmente, a partir de um livro recentemente publicado por David Motadel, “Islam and Nazi Germany’s War”/O Islão e a Guerra da Alemanha Nazi (The Belknap Press da Harvard University Press, 2014).

2. Um dos aspectos mais estranhos e curiosos do livro de David Motadel é o relato que o autor faz do fascínio que existia entre vários membros da elite do Partido Nazi face ao Islão. Dois casos, que abordaremos mais à frente, são objeto de particular atenção: o de Heinrich Himmler, um dos principais líderes nazis, responsável pela Schutzstaffel (SS)/“Tropa de Protecção” e directamente ligado aos horrores do holocausto da população judaica; e o do próprio Adolf Hitler. Ambos são objeto de análise detalhada no capítulo 2 intitulado “O Momento Muçulmano de Berlim”. Interessante é ainda a discussão feita por David Motadel em torno do problema da ideologia (pp. 56-70) e da dificuldade colocada pela superioridade da raça ariana. Esta foi proclamada, por exemplo, no Mein Kampf de Adolf Hitler (1925), especialmente no capítulo 11 (I Parte), “Raça e Povo”. Por outras palavras, como é que um Estado ideológico, como era a Alemanha nazi, fundado na convicção da superioridade rácica do povo germânico – e obcecado com a sua pureza –, se relacionava com o Islão e os povos muçulmanos, nomeadamente árabes, turcos e persas? A questão é ainda mais curiosa se pensarmos que o principal ideólogo da teoria racial nazi, Alfred Rosenberg, no livro “O Mito do Século XX ("Der Mythus des 20. Jahrhunderts”/O Mito do Século Vinte (1930), fez a apologia da subjugação do mundo islâmico sob o domínio imperial europeu (Capítulo 6 do Livro 3, “Um Novo Sistema de Estado”).

3. Entre a elite do Partido Nazi, Heinrich Himmler foi, provavelmente, o mais fascinado com o Islão e aquele que mais acreditava existir uma grande afinidade deste com os valores do nacional-socialismo (nazismo). Importa aqui recordar um facto histórico: é a Himmler que se deve a criação nos Balcãs primeira divisão não germânica das Waffen-SS (1943-1945), recrutada entre muçulmanos da região, especialmente bósnios. O pensamento de Himmler sobre o Islão foi sobretudo relatado nas memórias do seu médico pessoal, Felix Kersten, que escreveu um capítulo inteiro sobre o assunto. (As citações que fazemos a seguir são retiradas do já referido livro de David Motadel). De acordo com esse relato, Himmler teria lido vários livros sobre o Islão e biografias do Profeta, estando convencido que Maomé era uma das maiores figuras da história da humanidade. O que mais impressionava Himmler era ter encontrado no Islão as qualidades de uma “religião masculina” e a “bravura de soldados” (p. 60). Este terá confidenciado a Felix Kersten o seguinte: “Maomé sabia que a maioria das pessoas são terrivelmente covardes e estúpidas. Por isso prometeu a cada guerreiro que luta com coragem e cai em batalha […] mulheres bonitas […]. Este é o tipo de linguagem que um soldado entende. Quando acredita que será recebido desta maneira na vida após a morte, está disposto a dar a vida. Vai estar entusiasmado com a ida para a batalha e não vai temer a morte. Pode achar isso primitivo e rir-se… mas baseia-se em sabedoria profunda. A religião deve falar a língua de um homem.” (p. 61). Himmler, nascido numa família católica mas que abandonou o catolicismo em 1936, ter-se-á referido em diversas ocasiões ao Islão, pondo-o em contraste especialmente com a Igreja Católica. Usualmente, nessas conversas, menosprezava o Cristianismo por ser uma religião débil e pouco masculina, lamentando o facto de não conter “promessas aos soldados que morrem em batalha”, não havendo nenhuma recompensa no além, por atos de bravura. Quanto ao Islão, era uma “fé prática que forneceu os crentes orientação para todos os dias vida“, sendo uma religião muito mais “inteligente”. Em termos históricos, Himmler lamentava ainda que os exércitos turco-muçulmanos não tivessem conseguido conquistar a Europa no século XVII, quando foram derrotados às portas de Viena, em 1683. (Aparentemente, porque que teriam levado aos povos germânicos uma religião mais consentânea com a sua raça.)

4. Também Adolf Hitler terá tido similar fascínio pelo Islão. Segundo relatos da irmã de Eva Braun, Ilse, teria abordado várias vezes, em conversa com ambas, o tema do Islão. À semelhança de Himmler, via-o como uma religião “forte” e “prática, por oposição ao Cristianismo que era uma religião “artificial”, “suave” e de “sofredores” (p. 63). Apreciava particularmente o facto de o Islão ser “uma religião do aqui e agora”, por isso superior ao Cristianismo, uma religião do reino vindouro. Mesmo aí, em comparação com o paraíso prometido pelo Islão, era muito pouco atrativo (idem). Os seus aspetos “masculinos” e “guerreiros” terão impressionado igualmente, em termos muito favoráveis, o líder nazi: “A exortação para lutar corajosamente é explicativa em si mesma” terá este comentado. “Observe-se, a propósito, que, como corolário”, ao muçulmano “foi prometido um paraíso cheio de houris” (virgens) […] O Cristianismo não prometeu nada comparável. Os cristãos dão-se por satisfeitos “se após a sua morte forem autorizados a cantar aleluias!” (ibidem). Quanto ao passado histórico, Adolf Hitler lamentava a derrota dos exércitos árabes por Carlos Martel na batalha de Poitiers (732) e, mais tarde, a perda do Al-Andalus (a Península Ibérica muçulmana medieval). Para este, o período islâmico da Península Ibérica teria sido "o mais culto, o mais intelectual e em todos os aspectos a melhor e mais feliz época na história da Espanha” ao qual se seguiu um período de “perseguições com atrocidades incessantes” (p. 64). Mas como se conciliava este fascínio pelo Islão com a superioridade da raça ariana, dogma central no ideário nazi? Basicamente a solução passava por separar o Islão da “raça” dos seus seguidores. Na óptica de Adolf Hitler o Islão era uma religião superior mas já os seus seguidores árabes eram “inferiores”. Quanto aos alemães, tinham o infortúnio de ter “uma religião errada”. O Islão era mais compatível com o “espírito vital” e características guerreiras dos povos germânicos do que o Cristianismo, imbuído de “mansidão e flacidez” (p. 65).

5. Coincidência ou talvez não, o pensamento de Himmler e de Hitler sobre o Islão descrito no livro de David Motadel ecoa de perto o do filósofo germânico, Friedrich Nietzsche, em “Der Antichrist”/O Anti-Cristo” (1888), a sua última obra concluída. Atente-se neste excerto onde se denota uma espécie de “realpolitik” filosófica: Se o Islão “despreza o Cristianismo, tem para tal mil razões: o Islão tem homens como pressuposto […]. O Cristianismo desperdiçou os frutos da cultura antiga, fez-nos perder novamente mais tarde os frutos da cultura [do Islão]. Não podia em si, é certo, haver escolha alguma entre o Islão e o Cristianismo, como tão pouco entre um árabe e um judeu. A decisão está tomada, ninguém é livre de ainda aqui escolher. Ou se é um chandala [escravo] ou não... “Guerra total com Roma [ao Cristianismo]! Paz e amizade com o Islão” […] (trad. port. Edições 70, 1997, pp. 98-99). Outro paralelismo curioso com a elite nazi e o seu menosprezo pelo Cristianismo, encontra-se neste segundo excerto do mesmo livro, onde Nietzsche também considera que o Cristianismo era a “religião errada" para a virilidade e emergia vital dos povos germânicos: “Que as raças vigorosas do Norte da Europa não tenham rejeitado o Deus cristão, eis o que não honra de modo algum o seu talento religioso - para já não falar no seu gosto. Deveriam ter acabado com esse monstruoso produto da décadence, mórbido e senil.[…]” (p.20). Que pensar deste dois trechos agressivos, laudatórios do Islão e depreciativos do Cristianismo? São meras coincidências de pensamento com a elite nazi? Será que tudo isto se pode explicar como sendo apenas parte de um certo “zeitgeist" (espírito da época)? Ou será que há questões mais profundas e ligações “perigosas” entre o pensamento de Nietzsche sobre o Islão e a elite do Partido Nazi? E que pensar do atual PEGIDA e das suas manifestações anti-islamização: inserem-se numa lógica de extrema direita racista, com proximidade a círculos neo-nazis? (Se for o caso, não deixa de ser irónico quando pensamos no fascínio de Heinrich Himmler e Adolf Hitler tiveram pelo Islão). E o anti-semitismo atual, alimenta-se das ideias anteriormente citadas? Quando olhamos para a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, não estamos perante interpretações e apropriações do Islão, que ressoam às descritas no livro de David Motadel, usadas hoje pelo totalitarismo islamista-jihadista? Escavar nas ideias políticas traz muitas surpresas e levanta questões perturbadoras que julgávamos enterradas na história do século XX.

Investigador. Autor do livro "Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História" (Almedina, 2006)

 

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