Nada como uma mortezinha para ascender à beleza

Jessica Pratt não gosta nada que olhem para ela como uma mulher que faz canções belas e delicadas. Para seu azar, On Your Own Love Again, o seu segundo e mais recente disco, é um belíssimo conjunto de canções – cheias de morte, mas belas e delicadas.

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Dola Baroni

Está naquela idade perigosa, os 27 anos, e leva dois álbuns de folk assombrada no currículo, o último dos quais, On Your Own Love Again, acabado de chegar a prateleiras e servidores desse mundo fora.

É uma rapariga de cabelo ondulado, falso loiro, com um daqueles pares de olhos que parecem não ter sido desenhados apenas para olhar mas antes atravessar o objecto que miram. Vinte e sete aninhos e já duas dezenas de cantigas paridas à guitarra e pejadas de morte e relações falhadas, das quais fala sem rodeios e com muito palavrão à mistura. E no entanto, as descrições da obra de Jessica Pratt fazem-na parecer uma doce menina bem comportada que faz cançonetas bonitinhas – um erro de percepção que a persegue e irrita.

“Talvez seja da voz”, diz ela, ao telefone de Los Angeles, para onde se mudou em 2012, após a morte da mãe e o fim de uma relação tão longa que apesar de nunca ter visto anel “era quase um casamento”, explica. A voz da menina Pratt é, de facto, bonita, tal como os seus dedilhados e as suas melodias. Tem uma inflexão nasalada que traz doçura à “melancolia em geral” que afirma ser o seu tema, e que lhe valeram comparações com Vashti Bunyan e outras damas da folk pastoral. Mas ela não tem “paciência nenhuma para essas comparações”, acha-as “preguiçosas” e “não [é] assim tão fã desse tipo de folk”.

Demora um bocadinho até que Pratt se liberte e fale com este à vontade, mas quando isso acontece as suas frases carregam o desassombro dos adultos batidos. Em conversa a sua paleta emocional é ampla: ri-se com facilidade, comporta-se como uma adolescente quando o nome de David Berman – o líder dos Silver Jews, cuja escrita admira – vem à baila, ouve atentamente cada pergunta e depois de uma pausa esforça-se por responder com mesura, até que se embrenha nas suas respostas e vai de monólogo afora.

“Isto vai soar a crítica, e se calhar é injusto da minha parte, mas algumas pessoas são insensíveis às às nuances da música”, diz, a respeito da apreciação com que a humanidade costuma presentear as suas canções. “Ouvem à superfície e à superfície é uma rapariga a cantar por cima de dedilhados, pelo que não lhes ocorre outra coisa que dizer que é bonito. Mas há gente que esquece que é uma mulher a cantar e percebe que nas minhas canções há um sentido de morte e não apenas uma superfície agradável”. De novo a pausa e: “Pelo menos eu acho que há escuridão nas minhas canções. E para ser honesta, não teria graça se não tivesse, pois não?”. E aqui ri-se. Tem um sentido de humor mais retorcido do que a imprensa faz parecer.

On Your Own Love Again é a sequência lógica da estreia, homónima, de 2012: ainda é maioritariamente composto por voz e guitarra dedilhada, mas é notório que ela cresceu como compositora – a forma como as dissonâncias da guitarra se entrançam com a melodia e as harmonias de voz e do piano em I've got a feeling é esclarecedora do grau de domínio de composição que Pratt atingiu.

É também, a primeira vez que há sobre ela expectativa, agora que Jessica Pratt criou o seu pequeno culto, ao ponto de lhe valer um contrato com a Drag City e não ter de arranjar um emprego para pagar a renda ao fim do mês. Um golpe de sorte, diga-se: quando a estreia saiu, Pratt perdera a esperança em alguma vez ser publicada e preparava-se para fazer não sabe bem o quê com a sua vida.

A história ganhou contornos de lenda, mas Pratt confirma-a: foi Tim Presley, dos White Fence, que, ao ouvir as gravações caseiras da rapariga, partiu o seu mealheiro e investiu tudo o que tinha no que veio a ser Jessica Pratt. Enamorado da guitarra e da voz, criou uma editora para o efeito. Não foi um êxito colossal – antes aquele tipo de disco que vai sendo passado de mail em mail num link ilegal, e cria casalinhos através das trocas de mensagens nos chats das comunidades online. Quando a exposição chegou ao ponto de Pratt ser um nome conhecido de mais que meia-dúzia de tolinhos da folk choninhas, já a mãe dela morrera e a relação findara – digamos que não foi exactamente como se a edição do disco a tivesse deixado eufórica.

Hoje Pratt não ouve “esse disco”. “Até acredito que seja um bom exercício voltar a ouvir a obra passada de vez em quanto, mas neste momento ganhei uma certa perspectiva sobre ele e não preciso de o reouvir”. Isto tem a ver com vergonha: “É fácil ficar incomodada com o que fiz para trás: se tens brio orgulho na tua arte e se queres melhorar sentes vergonha pelo que criaste quando sabias menos”. É nesta altura que menciono uma frase que Berman me disse um dia: “Ou aprendes a tua arte ou um dia a raiva vai-se e ficas sem nada”. Pratt pára no pronome pessoal: “Espera, ele disse-te isso? Conheceste-o? Mas como, ele nunca sai de casa”. E quando ficou a saber que, sim, no passado dei com o homem a conversa virou e entrevistada passou a entrevistadora: queria saber tudo, como fã que é.

“Imagino que com o Berman, pelo que li dele, ele deve centrar-se na raiva; mas comigo... A tristeza ou a melancolia em geral baseada, sei lá, num número de coisas, isso é mais o meu universo, o meu motor. E as pessoas nesse estado produzem muito boa música”. Pondera um pouco e continua: “Acho que, no meu caso, é impossível não aprender nada sobre como estruturar uma canção quando estou a estruturar uma canção. Não digo nesse exacto instante, mas quando reouço apercebo-me do que fiz e como fiz”.

No caso de On Your Own Love Again, o método foi o isolamento. “A maior parte dos meus amigos deixou São Francisco [onde ela vivia], pelo que mudei-me para Los Angeles e, estando sozinha numa nova cidade, sem emprego, usei esse tempo para estar só e concentrar-me na escrita e tentar resolvê-la no mínimo tempo possível. Tendo a demorar muito com as canções e preferi escrever num período curto e intenso; tinha medo de nunca acabar”, diz, o que faz sentido se pensarmos que o primeiro disco tinha canções gravadas há anos.

O seu único receio era que a “consciência de que havia uma audiência, por mais pequena que fosse, à espera, resultasse numa espécie de auto-censura”, uma impossibilidade, face às condições emocionais em que o disco foi criado: “A morte é interessante no sentido em que não se pode discutir com ela. Durante algum tempo é quase impossível pensar em coisas mesquinhas – e nesse sentido, não é que me tenha forçado a levar-me a sério, mas não havia outra opção: tinha de fazer música, não havia mais nada que pudesse fazer”.

Pratt faz parte da escola de John Cale, que um dia pontificou acerca do que é necessária para compor: “Podes ter toda a escola deste mundo, mas se não vier do intestino não interessa para nada”. “É estranho”, diz Pratt, notando um paradoxo: “Tens que ter qualquer coisa sobre o que escrever. No meu caso, estava a atravessar coisas tão duras que não me faltava matéria. Sei que posso ser mal compreendida ao dizer isto, mas de certa forma tive sorte: do ponto de vista de quem escreve não me faltava sobre o que reflectir”.

Presumo que seja a isto que se chama romantismo – e a presunção faz mais sentido quando ela pondera sobre as forças que se movem inconscientemente rumo à canção: “Sempre que se está num período de criação intenso chegas a um ponto que não imaginavas chegar. Pode ser assustador, mas também é reconfortante saber que estás a entrar em contacto com alto teu que permanecia escondido”, diz, equiparando a arte de alinhar notas à perigosa ciência de abrir buracos na terra à cata de minério. “Nesse sentido o Berman tem razão: é assustador pensar que podes nunca mais voltar a conseguir escrever uma canção. Esse é o meu maior medo: que o talento vá embora. Toda a gente tem músicos favoritos que a dado ponto caíram”.

Neste momento isso não parece ser possível – ela está no topo da forma, como a delicada segunda linha de guitarra de Game that I play demonstra. Em Strange melody a melodia desce, pairando num quase-vibrato demasiado belo para ser possível; um bordão repetido em Jaqueline in the background trai o seu amor por melodias antigas, eximiamente guiadas – o exemplo supremo é a faixa que dá nome ao disco, cujo entrançado de guitarra devia ser alvo de debates e exposto em universidades.

“É-me difícil concentrar-me durante largos períodos de tempo”, diz Pratt em final de conversa. “Por isso atirei-me de cabeça a este disco. Agora que está feito”, começa, antes de tropeçar de novo no seu próprio mito romântico, “não sei, demora muito a perceber como é que uma morte pode afectar-te. Pode ser um processo muito catártico, mesmo que só se reconheça muito mais tarde. Talvez um dia tenha uma visão mais clara sobre o que aconteceu. Para já digo apenas que precisava de fazer este disco”.

Ainda bem que o fez. Entretanto, não lhe digam que escrevemos isto, mas On Your Own Love Again é belíssimo. E negro, também.

 

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