Os desafios da RTP

O mais difícil desafio consiste na conjugação entre a qualidade e o carácter distintivo da sua programação e a procura de uma maior audiência.

O processo de substituição do Conselho de Administração (CA) não beneficiou nada a imagem da RTP, já perturbada pela agonia em que a empresa foi mergulhada pelos erros de Relvas.

A atribulada demissão do CA fez a RTP regressar aos tempos de instabilidade, quando muitos dos conselhos não chegavam ao fim dos seus mandatos. Recorde-se que, entre 1974 e 2002, a RTP teve 24 diferentes conselhos de administração, ou seja, praticamente, uma média de um por ano! As recentes alterações legais à regra da inamovibilidade dos gestores constituem um claro retrocesso.

O novo CA defronta-se com os tradicionais desafios impostos à RTP: a definição da sua estratégia de conteúdos, a sustentação financeira, a garantia da sua independência e a valorização da sua estrutura multimédia.

O mais difícil desafio da RTP, sobretudo do serviço público de televisão, consiste na conjugação entre a qualidade e o caráter distintivo da sua programação e a procura de uma maior audiência. O recente documento do CGI definindo as Linhas de Orientação Estratégica aponta como primeiro objetivo “a qualidade dos serviços que presta e, só depois, as audiências que conquista”. Discordo da desvalorização da luta pelas audiências! Não invoco apenas documentos de instâncias europeias que consideram legítima a procura de amplas audiências. A doutrina sobre o serviço público, expressa em dezenas de documentos de várias instâncias, desde a Comissão ao Parlamento Europeu, distancia claramente o conceito de serviço público europeu do vigente, por exemplo, nos EUA. Aqui sim, a oferta de conteúdos de serviço público é meramente complementar, para referir uma expressão sem dúvida equívoca e infeliz utilizada pelo futuro p residente da RTP em entrevista recente. Ora a RTP deve dirigir-se a todos os públicos e não pode limitar-se a difundir os conteúdos que os operadores comerciais não escolhem por opções económicas…

A ambição de ter maiores audiências não tem necessariamente a ver com a obtenção de mais receitas publicitárias. As limitações à emissão de publicidade – a RTP1 tem apenas acesso a metade do tempo dos operadores comerciais e a RTP2, como os canais de rádio, não a podem emitir… – desvalorizam a relevância das suas receitas. Mais audiências representam, antes, mais legitimidade e uma acrescida influência social e cultural, imprescindíveis a um adequado desempenho do operador público. Entre 2013 e 2014, a RTP1 aumentou o seu share médio de 13,1 para 15,6, sendo o único dos quatro canais de acesso livre que o conseguiu subir. É verdade que a qualidade, a diversidade e a inovação, marcas imprescindíveis numa programação de serviço público, foram demasiadas vezes, no quadro de um forte desinvestimento em grelha, inaceitavelmente sacrificadas, mas a relevância desta subida não pode ser desvalorizada. Sublinhe-se até que, apesar disso, a RTP continua a ser um dos serviços públicos europeus com menores shares na rádio como na televisão. Por exemplo, a RTP1 e a RTP2 chegam em conjunto perto dos 18% de share, enquanto em países como Islândia, Alemanha, Grã-Bretanha, Finlândia, Noruega e Bélgica (flamenga) os canais públicos televisivos de acesso livre ultrapassam os 40% e, em 15 países europeus, a liderança nas audiências continua a caber a um canal público...

As receitas publicitárias da RTP estão, de facto, longe da relevância que já tiveram. Em 1990, por exemplo, representavam 65,7% do total das receitas. Em 2013, as receitas de publicidade de todos os canais televisivos da RTP limitaram-se a 7,8% do total dos proveitos.

A muito menor dependência da empresa face às receitas da publicidade aconselharia até que fosse ponderada uma nova descida no tempo de publicidade da RTP1. Como se sabe, em alguns países europeus (Grã-Bretanha, países nórdicos, Espanha e Letónia) ela não é emitida nos operadores de serviço público de rádio e televisão. Em quase todos os outros existem fortes limitações horárias.

A redução da publicidade na RTP1 constituiria um forte impulso para a saúde económica do sector dos media, em particular da televisão. No entanto, ela apenas seria possível caso o poder político tivesse a coragem de alterar, mesmo que muito limitadamente, os montantes da contribuição para o audiovisual que as famílias pagam – das mais baixas da Europa, mesmo em função do PIB nacional… – ou diferenciar esses montantes consoante se tratasse de famílias ou de grandes empresas. Ou ainda que não ignorasse a relevância dos canais internacionais de rádio e de televisão da RTP, financiando-os através de uma subvenção pública, para que não existam argumentos para justificar a inaceitável situação atual: inexistência de diretores exclusivamente afetos a esses canais, redução da programação autónoma especificamente consagrada às comunidades portuguesas ou de língua portuguesa, desinvestimento nas redes de distribuição das emissões.

Apesar de o atual modelo de governação visar distanciar a empresa da tutela governamental, recai sempre sobre a RTP a suspeição de submissão ao poder político. Quando se avizinham eleições legislativas e presidenciais, será maior o escrutínio sobre as escolhas do CGI e do CA, mas igualmente sobre o cumprimento das regras do modelo de governação em vigor: as competências do Conselho de Opinião, da ERC e dos provedores e a autonomia editorial dos diretores de conteúdos.

O recente documento do CGI definindo as Linhas de Orientação Estratégica aposta em novas plataformas digitais e propõe-se “procurar sinergias entre rádio, televisão e internet, salvaguardando as linguagens próprias e as especificidades de cada um destes meios, num quadro de efectiva colaboração e complementaridade”. Este assinalável objetivo não deve todavia ser alcançado através da canalização das prioridades do serviço público para a televisão, em detrimento das outras plataformas e, desde logo, da rádio. Há dias, na entrevista concedida à RTP Informação, tanto o presidente do CGI como o próprio jornalista várias vezes se referiram à RTP como a televisão ou a televisão do Estado, demonstrando como, mesmo involuntariamente, a rádio e o multimédia aparecem inaceitavelmente desvalorizados...

Professor universitário e vice-presidente da ERC

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