A viagem como precipitação para o desconhecido dança-se em Guimarães

Na sua quinta edição, entre 5 e 14 de Fevereiro, o GUIdance faz-se maioritariamente de estreias, com destaque para as novas criações de André Mesquita, Patricia Apergi e Tânia Carvalho. A uni-las uma mesma força: a viagem.

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Planites dr
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Nostos Bruno Simão

Ainda que de forma imprevista, é impossível não identificar na quinta edição do GUIdance, Festival Internacional de Dança Contemporânea de Guimarães, uma claríssima temática: a viagem. Da Odisseia, de Homero, que abastece a Tecedura do Caos, de Tânia Carvalho (com estreia nacional marcada para o Centro Cultural Vila Flor, a 14 de Fevereiro), a duas coreografias unidas por uma reflexão sobre o lugar de onde se parte e o desconhecido para onde se vai, ambas com títulos em língua grega – Nostos, de André Mesquita, e Planites, de Patricia Apergi.

Rui Torrinha, director do GUIdance, confirma ao PÚBLICO a incidental coincidência de temáticas, embora frise que “o forte lado de questionar o estado de coisas que a dança sempre teve” pode naturalmente conduzir a vontades semelhantes de abordar as grandes questões sociais de cada momento histórico. Na sua opinião, no entanto, “o denominador comum do GUIdance é tratar-se de um festival de estreias”, muitas delas beneficiárias de residências artísticas em Guimarães e no Centro de Criação de Candoso.

A primeira dessas estreias, naquele que constitui esta noite o espectáculo de abertura da quinta edição do GUIdance (a última com consultoria de Rui Horta), no Centro Cultural Vila Flor, é precisamente Nostos – Uma Eventual Penumbra de Ambiguidade, num regresso de André Mesquita ao festival. Depois de ali ter mostrado Salto (2013), em que se propunha encetar um diálogo entre o corpo e o pensamento contemporâneo, partindo especificamente de Gilles Deleuze, Mesquita volta a trabalhar num campo de abstracção e na companhia de um autor de cabeceira – George Steiner. Mas Nostos nasce, antes de mais, como pretexto para uma colaboração há muito proposta por Mark Deputter, director do Teatro Maria Matos (onde a peça estará entre 12 a 15 de Março), ao fundador e coreógrafo da TOK’ART: juntar a sua linguagem à de um músico que acompanhasse ao vivo o movimento dos bailarinos.

A oportunidade acabou por surgir com o convite dirigido ao pianista australiano (baseado em Berlim) Simon James Phillips para ser o músico residente do Maria Matos durante 2015. “Senti-me muito tocado pela música dele porque tem um espectro atmosférico e também eu tenho a tendência para trabalhar com atmosferas”, diz André Mesquita ao PÚBLICO sobre o encontro entre os dois. Depois, o coreógrafo foi-se encontrando com textos sobre nostalgia, o sítio a que se pertence ou o corpo como casa. “Para alguém, como eu, que usa o corpo para se inscrever no espaço, a casa está sempre presente, o corpo é a casa”, afirma Mesquita. “Mas foi importante para mim perceber que, quando estamos fora ou deixamos a nossa base e nos encontramos longe das nossas raízes, estamos sempre em território desconhecido.”

Simon James Phillips confessa encontrar algum conforto na abstracção comum à linguagem dos dois. “Ambos nos baseamos no tempo e em algo que evolui ao longo desse tempo, que é a estrutura básica daquilo que produzimos”, acrescenta o músico. André Mesquita socorre-se então de Steiner para citar que “a música e a dança são em si mesmas movimentos e figurações primordiais do espírito humano que anunciam uma ordem de existência mais próxima do mistério da criação”. Daí que Nostos não busque segurança numa narrativa e antes se entregue à exploração emocional daquilo que a nostalgia e o regresso a casa estimularam no corpo dos cinco bailarinos em palco.

Viagem de sobrevivência

Se André Mesquita fala em território desconhecido, também essa precipitação sobre o vazio acontece em Planites, da coreógrafa grega Patricia Apergi, sábado no CCVF. Desafiada pelo programa Modul Dance (de cooperação entre 20 salas de espectáculos europeias) a criar uma nova coreografia cujo processo deveria respeitar quatro fases – pesquisa, residência, produção e digressão –, Apergi debruça-se sobre o movimento da viagem, de pessoas que se entregam à estrada deixando o passado para trás e de olhos postos num futuro menos opressivo. “Planites”, explica-nos, “vem da palavra grega ‘planetas’ e, tal como planetas que circulam à volta do sol, significa também vagabundo ou viajante.” A partir daí, a coreógrafa fez uma investigação do flamenco, das danças celtas irlandesas e de danças árabes e africanas, todas nascidas de jornadas migratórias.

Talvez mais importante, no entanto, tenha sido a série de entrevistas que realizou a pessoas chegadas à Grécia, fugindo de cenários de guerra e por vezes muito mal recebidas, mas também a cidadãos gregos que, com o país asfixiado pela crise financeira, optaram por partir. “Quis perceber o que se passa com estas pessoas, aquilo que encaram, quais as circunstâncias em que vivem estas pessoas que procuram um futuro melhor para as suas famílias, quis saber o que acontece durante esta viagem”, justifica. Por isso, simbolicamente, Patricia Apergi escolheu cinco intérpretes masculinos que começam Planites solitários, olhando um lugar vazio, encenando uma despedida. E partem de cinco pontos diferentes, valendo-se de igual forma de técnicas distintas de street dance, artes marciais, ballet clássico ou dança contemporânea. “São homens devido à ideia arquetípica de que o homem é aquele que viaja e a mulher simboliza a casa, estabilidade”, afirma. A presença feminina, intuída na ausência, é precisamente a das mulheres, mães, filhas, irmãs, namoradas ficadas em/na terra.

A viagem de sacrifício e sobrevivência é de uma tal intensidade, reforça Apergi, que estas pessoas começam o seu caminho sozinhas mas encontram nos outros viajantes uma família, com quem partilham as dificuldades do percurso, ou inimigos que são capazes de matar por ameaçarem o seu objectivo comum. A sobrevivência acontece não apenas no sentido mais evidente, mas também naquilo que morre em cada um para conseguir terminar a viagem.

Um festival de estreias

Planites é o grande destaque da programação internacional do GUIdance 2015, defendido por Rui Torrinha por Patricia Apergi ser “um nome em ascensão no corredor europeu e que em breve será um nome de referência”. “Estamos a antecipar um pouco o nome de uma coreógrafa que está num caminho de afirmação.” A vocação do festival, reconhece, é uma firme aposta em estreias e uma oportunidade para catapultar jovens criadores. No caso, o desafio lançado a Filipa Peraltinha é tomado como exemplo, por significar a sua estreia (dia 12) na criação coreográfica com 423 Hz. Mas também os jovens coreógrafos Mara Andrade (Um Triste Ensaio sobre a Beleza, 13) e João Martins (Projeto Continuado, 14) têm no GUIdance um palco de confirmação das suas qualidades. Até dia 14, com um preço por espectáculo de 5 euros, Guimarães receberá igualmente Silke Z. e António Cabrita (6), Andresa Soares e a Máquina Agradável (7), Cristina Planas Leitão (13) e a muito aguardada estreia nacional de Tecedura do Caos, de Tânia Carvalho, recebida entusiasticamente nas suas primeiras apresentações em França.

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