A dúvida metódica

Um episódio fulcral da luta pelos direitos civis encenado com inteligência como um jogo de estratégias políticas.

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Cinecartaz: Trailer Selma

Se, há mais ou menos um ano, 12 Anos Escravo, de Steve McQueen, e O Mordomo, de Lee Daniels, serviram como “pára-raios” do modo como a instituição-Hollywood continua a olhar para a escravatura e para a experiência afro-americana, esse papel tem este ano sido desempenhado por Selma, terceira longa-metragem da cineasta (negra) americana Ava du Vernay.

É um olhar sobre um episódio fulcral da luta pelos direitos civis dos negros no Sul americano, ainda segregado, dos anos 1960: após uma explosão que matou quatro meninas numa igreja do Alabama em 1964, Martin Luther King, recém-galardoado com o Nobel da Paz, usa a indignação pública por esse crime como passo seguinte na batalha pelo reconhecimento dos negros americanos como cidadãos de corpo inteiro.  <_o3a_p>

O maior mérito do filme, recebido com alguma controvérsia nos EUA por criar um retrato “falseado” do presidente Lyndon Johnson (como se uma ficção inspirada em factos reais não falseasse sempre por sistema...), reside aí: esta não é a história certinha do costume, com bons e maus facilmente identificáveis. Selma desenha a luta pelos direitos civis como um jogo político calculado ao milímetro, um acumular de estratégias a médio e longo prazo, com King a apostar na impulsividade xenófoba dos racistas e na sua incapacidade de se controlarem para propulsionar o seu combate para as primeiras páginas dos jornais, enquanto Johnson tenta controlar a mensagem pelo seu lado para cortar as vasas ao activista. Mas não é por Ava du Vernay pintar as tentativas de King de montar uma marcha pelos direitos de voto dos negros americanos no Sul de Selma a Birmingham como frias manobras políticas que o filme escamoteia a complexidade da sua dimensão humana. Bem pelo contrário: os cálculos de King colidem de frente com a força das emoções que os acontecimentos criam, num constante braço de ferro entre a simples dignidade humana e a necessidade de obter resultados políticos. E o filme existe todo nessa corda-bamba entre o espontâneo e o calculado, o racional e o emocional, patente na própria dúvida de um Martin Luther King (interpretado com garra pelo britânico David Oyelowo) que se pergunta se um fim maior que o indivíduo vale verdadeiramente o sacrifício de uma ou de mais vidas.<_o3a_p>

Selma não recusa a dúvida, antes a acolhe e a defende, pelo meio de uma “visão de conjunto” que constrói um quadro extremamente rico do contexto em que tudo se passa e recusa o maniqueísmo simplista, onde King pode ser o “centro” mas não é o único. Existe no filme de Ava du Vernay uma bem-vinda complexidade que ultrapassa em muito a simples aparência de obra de prestígio que o filme parece transportar; uma vontade de dizer que a história nunca é, apenas, aquilo que vem nos livros. E, para que ela ganhe essa aparência de inevitabilidade, houve muitas dúvidas a moldá-la. Selma é um filme sobre essas dúvidas.<_o3a_p>

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