Kissinger na Grécia

O resultado das eleições gregas é um terramoto político que pode abrir uma nova etapa na crise europeia.

O resultado das eleições gregas é um terramoto político que pode abrir uma nova etapa na crise europeia.

A vitória do Syriza não tem precedentes: é a primeira vez que um partido populista de esquerda ganha uma eleição e forma governo na Europa Ocidental. Em conjunto, as forças extremistas têm a maioria absoluta dos sufrágios, enquanto a soma da Nova Democracia e do Partido Socialista caiu, em cinco anos, de mais de dois terços para menos de um terço do total dos votantes. O sistema de partidos que assegurou a estabilidade da democracia grega durante quarenta anos deixou de existir e o Partido Socialista passou a ser uma força residual. É esse o preço da combinação entre a ortodoxia económica alemã, o neopatrimonialismo grego e a incompetência das velhas dinastias políticas.

No dia seguinte à eleição, o Syriza anunciou, sem a menor hesitação, a formação de uma coligação governamental com os Gregos Independentes, um partido nacionalista de direita e antieuropeu. As duas alas do populismo triunfante uniram-se para confirmar a sua determinação comum em pôr fim ao regime imposto pelos sucessivos programas de ajustamento negociados com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.

Se o novo Governo quiser e quer respeitar o seu mandato democrático, Atenas  vai entrar em rota de colisão com Berlim (e Bruxelas) sem ter aliados nem num lado, nem no outro. O bom senso manda que as partes se empenhem em encontrar uma fórmula de entendimento que possa, por um lado, restaurar as condições de crescimento da economia grega e, por outro lado, evitar uma crise de pagamentos e um conflito com os credores internacionais.

O Presidente francês deu sinais de querer avançar nesse sentido e parece disponível para tratar com o novo primeiro-ministro grego, incitado a jogar as regras do jogo europeu. A União Europeia tem interesse em evitar uma ruptura que prejudica a sua credibilidade internacional e a Grécia não tem uma alternativa séria à sua permanência na união monetária europeia. Um compromisso implica a revisão dos programas de ajustamento para o conjunto dos países da Europa do Sul e moderar a disciplina financeira grega.

Há, porém, três obstáculos fortes que podem prejudicar essa linha geral. O primeiro resulta das novas capacidades institucionais e financeiras que protegem a moeda única dos piores efeitos de uma falência periférica. Em 2012, a saída da Grécia teria sido uma catástrofe europeia, mas Bruxelas (e Berlim) deixaram de temer esse cenário e, portanto, não estão preparadas para fazer demasiadas cedências a Atenas. O segundo decorre da determinação do Governo grego, que rejeita qualquer forma de continuidade dos programas externos de ajustamento e está convencido de que pode forçar Berlim (e Bruxelas) a recuar, pois, na sua opinião, os parceiros europeus ainda continuam a considerar a permanência da Grécia no euro indispensável para a União Europeia. O terceiro é o perigo de contágio político, desde logo nos casos da Espanha e de Portugal, onde se realizam eleições este ano. Com efeito, se a coligação populista puder obter de Bruxelas (e Berlim) o que os partidos moderados não conseguiram obter, a probabilidade de as forças populistas prevalecerem nas eleições espanholas e condicionarem as eleições portuguesas aumenta exponencialmente. 

Nesse contexto, é razoável admitir um cenário de crise europeia, em que um impasse prolongado nas conversações entre Berlim, Bruxelas e Atenas pode tornar muito forte a tentação de fazer da Grécia um caso exemplar.

Em 1974, Henry Kissinger defendeu uma estratégia desse tipo para conter os riscos de contágio da revolução portuguesa, que podia abrir caminho à tomada do poder pelos partidos “eurocomunistas” na Espanha, em Itália e mesmo em França. Segundo a “teoria da vacina” norte-americana, os aliados ocidentais deviam isolar completamente Portugal, em resposta à posição dominante do Partido Comunista e dos seus aliados militares. Contra essa estratégia punitiva, que podia ter precipitado uma guerra civil, Mário Soares e Willy Brandt mobilizaram a Internacional Socialista, cujo apoio se revelou crucial para garantir a vitória das forças democráticas na transição portuguesa. 

Quarenta anos depois, existe o risco de os novos aprendizes de feiticeiro em Berlim (e Bruxelas) quererem seguir o mau exemplo de Washington para fazer falhar, rapidamente, a experiência grega e neutralizar os riscos de contágio europeu.

Os perigos dessa estratégia, que pode provocar uma escalada política e social na Grécia e acelerar a polarização entre as forças populistas e os “partidos clássicos” na União Europeia, parecem evidentes, mas não chegam para a esconjurar.

Tal como na revolução portuguesa, a esquerda social-democrata tem na crise grega um momento decisivo para demonstrar que consegue neutralizar a ascensão populista, inverter o declínio dos partidos moderados e restaurar o processo de integração na Europa Ocidental.

Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)

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