As muitas dobras do livro

Em Paris, na Fundação Calouste Gulbenkian, uma grande exposição convida-nos a reflectir sobre o livro e o acto de ler.

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Um excerto do filme de Truffaut Fahrenheit 451, em que as personagens declaram o livro que guardam em memória depois de o terem queimado
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Peça de Lawrence Wiener
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Obra de Olafur Elliasson

Pliure. Prologue (la part du feu), o título da exposição que inaugurou na Fundação Calouste Gulbenkian de Paris, tem uma tradução aparentemente fácil: Dobra. Prólogo (a parte do fogo). Contudo, os seus dois primeiros termos possuem significados que ultrapassam em muito a literalidade de cada palavra.

A dobra é o acto fundador do livro. Aquele que significa na indústria gráfica a acção de dobrar o papel já impresso. Coser e encadernar, as duas tarefas finais, sobrepõem-se a este dobrar inicial ao mesmo tempo que antecedem a passagem da obra para as mãos e olhos do leitor. Dobrar não é, pois, passar um dedo pelo ecrã do tablet, como hoje fazemos quando queremos passar a página de um livro digital. A dobra é outra coisa. Como dizem os nomes dos núcleos desta exposição, ela é uma fenda, uma incarnação, um desejo de totalidade, um incêndio, um começo, enfim, que é também um fim.

O comissário, Paulo Pires do Vale, parte assim de um lugar prévio – a dobra e o prólogo – para conceber uma exposição em torno do livro. Em torno do livro, mas não sobre livros. Há aqui fotografia, pintura, escultura, cinema. E livros de artista. E memo um ready-made. Pliure dá continuidade a um outro projecto que esteve na Gulbenkian de Lisboa em 2012: Tarefas infinitas, quando a arte e o livro se iluminam. Algumas obras que aí estiveram mostram-se outra vez em Paris. Outras são inéditas, obedecendo ao novo conceito que orienta a exposição, bem como aos condicionalismos impostos pela distância e o lugar. Em Lisboa, de facto, a Galeria de Exposições Temporárias da FCG dispõe de uma única sala dividida por expositores, que condiciona um percurso em forma de gancho. Em Paris, pelo contrário, o palacete haussmaniano que alberga as instituições da fundação permite ao visitante flanar pela exposição, avançar e recuar entre os diversos núcleos, e certamente ficar com uma leitura da mesma que não se esgota no momento da visita.

A exposição, que terminará a 12 de Abril, terá uma segunda parte a inaugurar a 10 do mesmo mês no Palais des Beaux-Arts. Ficará até 7 de Junho e, com o título Pliure. Épilogue (La bibliothèque, l’univers) completará aquela que aqui vemos. Contudo, Pires do Vale afirma-nos desde já que esta será sempre uma exposição incompleta. Que nunca, como agora, é dada ao espectador a possibilidade de construir ele próprio aquilo que vê através de infinitos caminhos, sem que estes jamais se fechem ao conhecimento e ao sentido.

O prólogo de que aqui se fala, com efeito, é aquele que todos os escritores conhecem tão bem: o que é escrito no fim, depois de terminada a obra, qualquer coisa que conhece inúmeras re-escritas desde o começo, e que só chega à sua versão final depois desse último ponto que termina o livro. O prólogo é assim uma espécie de epílogo antes da letra: uma conclusão que não o será no leitor, visto que, supostamente, possui como função introduzir o conteúdo do livro. Do mesmo modo, a dobra ou prega não é, ainda nas palavras do curador, um simples acidente do livro. Ela fecha a página, mantém unidas duas manchas de texto ou imagem que não o estão no momento da impressão, fazendo confluir aquilo que abre a multiplicidade de sentidos do livro. Paulo Pires do Vale introduz aqui o conceito de montagem cinemmatográfica para falar desta junção surpreendente de duas entidades distintas, não se esquecendo de a associar ao seu próprio trabalho como autor da montagem da exposição. Menciona ainda as notas, as setas, os sublinhados que cada leitor faz na margem do livro, junto à dobra ou à aresta da página, para nos dizer que cada leitura é única: o que cada um de nós retém de cada livro não é o que outro reterá. E também não é o que dele ficará numa segunda leitura. Pode mesmo dizer-se que cada livro constrói o leitor, e que o leitor é-o plenamente no momento de ler o livro.

Uma das primeiras obras que se podem ver na exposição refere-se justamente a este encontro. Trata-se de uma peça de Lawrence Weiner, Deep blue sky, onde se podem ler as palavras “alone at last with you” – escritas de ambos os lados da dobra do papel. Muito perto, pendurado de uma varanda no exterior (e por isso só acessível através da visão que dele temos a partir de uma janela), o “Ready-made malheureux”, uma cópia do livro que foi enviado à irmã de Duchamp para dele fazer um ready-made. A peça de Weiner pertence aliás ao primeiro núcleo dos cinco em que a exposição está dividida,“Uma fenda no mundo”.  Aqui se incluem outras obras tão diversas como, por exemplo, uma sombra de um amigo leitor em acrílico colorido, por Lourdes Castro, um livro de Richard Long, uma misteriosa ilustração numa edição antiga de “A Caça do Snark”, de Lewis Carroll, representando um mapa do oceano como um rectângulo branco, um livro perfurado com a imagem de uma casa de Olafur Eliasson.e, sobretudo, uma gravura anónima sobre uma coluna historiada de Constantinopla. Aqui, o gravador transcreveu minuciosamente, além das figuras da coluna, uma enorme falha no mármore branco original.

Incarnação, o segundo núcleo, trata do livro como “instrumento fecundante”, como qualquer coisa que “modifica a ordem do mundo”, que a “reescreve”, nas palavras do comissário. Cabem aqui um livro de horas que pertenceu à colecção pessoal de Calouste Gulbenkian, uma escultura anónima portuguesa do século XVI representando a “Virgem ensinando o Menino a ler”, e apenas mais uma obra: uma série de fotografias de Helena Almeida, “Estudo para dois espaços”, onde a mão se deixa ver, translúcida, passando as páginas de  um livro. “Tudo no mundo existe para chegar a um livro”, um verso de Mallarmé, anuncia o núcleo seguinte, que se ocupa do desejo de saber, do catálogo, da enciclopédia, e sobretudo, porque se trata aqui de arte, da biblioteca infinita da imaginação. Tem aqui lugar, como é evidente, um exemplar da edição original da “Enciclopédia” de Diderot e d’Alembert, aberta como que por acaso na página onde se reproduz um anagrama da palavra “abracadabra”. Há também obras de artistas plásticos para quem a interrogação sobre o arquivo e a memória são fulcrais: Boltanski (“Inventaire des objets ayant appartenu à une femme de Bois-Colombes”), Wolf Vostell, Claude Closky, Sol LeWitt, e mesmo dois livros que ensinam como jogar xadrez, de Duchamp: um escrito pelo próprio em colaboração, e uma tradução. Um excerto do filme de Resnais, “Toda a memória do mundo”, antecede o ponto mais enigmático deste núcleo, uma peça de Francesca Woodmann feita sobre livros de geometria e aritmética encontrados em casa de sua avó: sobre os diagramas lógicos e racionais, Woodmann colou algumas fotografias suas que convocam o paradigma do fantasma, como é tão usual na obra desta fotógrafa. O núcleo conclui-se com outra obra surpreendente: uma “Vanitas” italiana do século XVII, na qual o pintor representou um fragmento escrito do que apenas se distinguem algumas letras. É que a tentação de tudo coligir tem também uma leitura moral: a de um acto de suprema vaidade.

“O livro que se incendeia” começa com duas pequenas peças, de Ed Ruscha e Bruce Nauman: o primeiro, em “Various small fires and milk”, mostra fotografias de pequenos fogos. O segundo, com Burning small fires, fotografa o arder literal dos primeiros. A “Biblioteca em fogo” de Vieira da Silva e uma gravura antiga de Dürer, um “São João devorando o livro de fogo”, anunciam um excerto do filme de Truffaut Fahrenheit 451, em que as personagens declaram o livro que guardam em memória depois de o terem queimado. Os blocos de ferro de Rui Chafes, que englobam as cinzas dos cadernos de apontamentos do escultor, recebem uma montagem à parte. O último núcleo é também o menor da exposição, mas provavelmente o mais forte. Apenas duas peças: um excerto de Alphaville, de Godard, e uma obra de Raffaella della Olga, “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard”: um livro escrito à mão com tinta fosforescente, que apenas guarda a luminescência característica do mineral durante alguns minutos. Depois, é a escuridão, a cegueira total.

 

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