A estrela renitente

Há exactamente seis pessoas que gostam das canções de Nuno Prata – o que é um crime. Precisamos de mais, muitas mais.

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Prata apresenta ao vivo o seu mais recente, terceiro, homónimo e delicioso álbum – lançado em Novembro do ano passado

Quando aventamos a hipótese de haver, ao redor do seu nome, um pequeno culto, Nuno Prata torce o nariz, franze os lábios e, em tom humilde, responde: “Não sei se esse culto existe, para ser sincero”.

Estou a mentir: não faço ideia de ele torceu e nariz ou franziu os lábios, porque falámos por telefone. A resposta é verdadeira, contudo. Bem, como a punchline, entregada com humor: “O meu culto deve ser de umas seis pessoas. Conheço-as todas pelos nomes”.

Pelo que é em nome da reputação deste jornal, cujo cuidado com os factos é famoso e vem de longe, que fazemos o seguinte apelo: pelo menos sete de vós têm de se deslocar hoje à Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, onde Prata apresenta o seu mais recente, terceiro, homónimo e delicioso álbum – que na realidade foi lançado no fim de Novembro do ano passado, mas ainda não teve sequer direito a concertos de apresentação. Sete hoje na ZDB, ok? E sete na FNAC de Leiria amanhã. Outras tantas seis dias depois, na FNAC do NorteShopping, no Porto. E mais sete na Casa da Guitarra, também na mui nobre e invicta, dia 14. E dia 19, no Teatro Municipal de Bragança, sete de novo. No dia seguinte, no Club Vila Real da cidade homónima, já sabem: sete pessoas pelo menos. E por aí fora, a cada concerto de Nuno Prata.

É o mínimo que merece o antigo baixista dos Ornatos Violeta, até porque só faz discos de quatro em quatro anos. É assim, diz porque não está “ligado à indústria”. Todos Os Dias Fossem Estes/Outros, a estreia, de 2006 “foi uma edição de autor apoiado pela Turbina, uma associação aqui do Porto que ainda trata dos meus concertos. Foi o último recurso para gravar o disco, já que eu não conseguia editá-lo sozinho”. Deve Haver, de 2010, a que Prata chama ternamente “o do meio”, como se de um filho birrento se tratasse, “foi quase da mesma maneira – tive um pouco mais de recursos, gravei no estúdio do Hélder Gonçalves e o disco foi editado com mais capacidade de edição e promoção por ter sido lançado numa etiqueta da Valentim de Carvalho, mas também investi financeiramente no disco”.

De modo que para este disco nem Prata “sem sequer” procurou “agentes nem editoras”. Um amigo, “ao ouvir algumas canções, insistiu que eu me candidatasse à fundação GDA [uma fundação que cuida dos direitos dos artistas]”. Por via das dúvidas, Prata fez o disco “a contar com não ter apoios”. Gravou-o numa sala que tem no Porto, onde ensaia, com o seu trio. A única participação extra é a de Manuel Cruz, antigo vocalista dos Ornatos, “que era o inquilino da sala onde estou, num andar de escritórios. E então vamo-nos encontrado e ele cantou numa”.

Por sorte, Prata obteve o apoio e agora temos uma dúzia de refrões imaculados, canções feitas de quase nada, uma guitarra, a voz, um baixo, umas percussões, que ecoam – por alguma razão – uma certa herança de Sérgio Godinho. Talvez por causa da dicção muito particular de Prata, que enfia sílabas onde não esperamos.

“A ideia”, conta, “era fazer uma coisa muito simples. Porque gosto das coisas assim. O Nico [Tricot, comparsa musical e metade da dupla que acompanha Prata ao vivo] tem uma bateria; mas era mais simples montar aqui só um timbalão e uma tarola que ele não precisasse e foi isso que usámos”. Vai andando sobre as águas, a primeira música do disco, que Prata escolheu para fazer o vídeo e apresentar o álbum, “tem umas percussões muito simples, um ovo tipo maraca. É assim que eu faço canções”.

Assim: com um assobio em Às voltas, uma melódica na magnífica Simplesmente é isso, e palmas a fazerem de percussão; ou um ukelele e uns xilofones em A minha inveja. “Os instrumentos que eu uso”, explica Prata, “são muito rudimentares: guitarra, voz, ukelele”. Uma parte do charme do disco reside, aliás, na simplicidade e particularidade dos sons: “um tecladozinho electrónico da Yamaha, muito simples, um harmónio, um órgão a pedais com fole”.

Se Prata “fosse um gajo mais expedito”, diz, “talvez o disco tivesse saído um ano antes”. Como não é, a sua produção vai “saindo conforme calha”, o que não é o ideal para um músico, mas que “já foi mais frustrante” de aceitar: “Acabei por habituar-me a isto”, diz, como quem encolha os ombros perante o que não pode mudar.

Nem sempre foi assim: em 2006, quando lançou Deve Haver pela Valentim de Carvalho, Prata achou “que, com um produtor e um estúdio a sério, uma editora por trás, isso seria um passo para subir”. Mas não: os resultados de mercado foram fracos, Prata acabou por não ter muitos concertos e “a coisa acabou por esmorecer”. Por coisa entenda-se: o interesse da indústria na carreira de Prata. Agora, com o primeiro? Com o primeiro doeu. “Quando tinha as canções para o primeiro disco fiquei frustrado porque achei que aquilo merecia outra atenção.

O primeiro encontro de Prata com o público foi atrás de uma guitarra-baixo, a bordo dos Ornatos Violeta. Nessa altura não lhe dava para compor: “O Manel [Cruz] assumia o capítulo da composição, muito porque sempre que o gajo fazia uma canção ela era incrível. Sentíamo-nos todos um bocado inferiores. Até que chegou a uma fase em que o Manel estava cansado de fazer sempre tudo e começou a motivar o pessoal para mostrar as ideias e isso ajudou a que eu assumisse as minhas canções”.

Depois veio um elemento que mudou tudo: a idade. “Nós éramos muito unidos desde putos; e passa algum tempo, começas a crescer e já não vêm todos tudo da mesma maneira como antes”. Antes, as canções de Manuel Cruz diziam “as coisas que [Prata] pensava”; depois “continuavam a dizer coisa que [Prata] pensava”, mas “havia coisas que não dizia e só eu poderia dizer”. Foi quando Prata começou a mostrar as sua canções, que foram bem recebidas pela banda. Nessa altura os Ornatos estavam a acabar e nenhuma das canções em que Prata andava a trabalhar saiu pela banda. Ficou para o que viria a ser a sua obra a solo, que diz dever a Manuel Cruz, cuja energia diz ser contagiante.

Pois é: já lá vai uma década. Em Janeiro 2004, Prata começou a tocar as sua canções (já então com Nico Tricot). Gravou uma maquete, andou por aí com ela, “à procura de interesse em edição e agenciamento”. O resultado, pelo menos para quem vinha do êxito retumbante dos Ornatos, deve ter chocado Prata: “Não encontrei nada”. O que aconteceu tornou-se uma marca da sua carreira: “Em 2004 tinha todas as músicas que saíram no disco; só as consegui gravar em meados de 2005 e o álbum acabou por sair um ano depois”. Tem sido assim desde então.

De modo que por vezes Prata precisa de arranjar outras coisas para fazer – em vez de estar a escrever discos uns atrás dos outros, como B Fachada, um dos seus admiradores, e “talvez o músico com quem mais [fala] de composição, de como se põe uma palavra aqui, ou se trabalha uma melodia”. Prata diz ser tão ausente do meio musical que não tem muita gente com quem conversar sobre isto.

Em 2008, quando a filha nasceu, foi trabalhar para a FNAC, a vender discos. Entretanto resolveu acabar o curso de Escultura, que tinha deixado parado por causa dos Ornatos e candidatou-se a dar aulas, o que fez durante um ano. No segundo ano não obteve resposta – mas “no dia em que ia gravar o segundo disco” ligaram-lhe a dizer “que tinha sido colocado”. É irónico: um tipo demora quatro anos a fazer cada disco. Quando, sem cheta no bolso, lá consegue arranjar maneira de gravar o segundo, aparece-lhe um emprego. Acabou por gravar o disco ao mesmo tempo que dava aulas de escultura.

B Fachada costuma fizer a Prata que este “apareceu antes do tempo”, isto é: que quando lançou o seu disco de estreia ainda não regressara a vontade de cantar em português, que se tornou a língua nacional da pop com a geração da Flor Caveira, com que Fachada, o fundo, também surgiu (apesar de já lançar discos antes de se associar a eles).

Por outro lado, talvez Prata não tenha feitio para estrela pop. Tem o talento, tem as canções – que não são bem pop, são uma espécie de folk artesanal com muita pinta – mas não tem o feitio. É, por assim dizer, uma estrela renitente, que brilha mas só para aquela meia-dúzia que sabe para onde olhar.

Neste momento diz estar a zero, isto é, não tem canções na gaveta e até anda com vontade de fazer uma nova banda em que só tenha de tocar um instrumento em vez de compor. Por amor à santa, façam favor de ir aos concertos deste homem e dar-lhe amor, que é para ele se sentar e parir um disco antes de 2018.

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