Sterne, nosso contemporâneo

Livro dos livros, romance e anti-romance, este clássico de Sterne interpela-nos com a sua rebeldia. Esta nova edição, publicada num único volume, foi objecto de uma revisão na tradução. O prefácio foi igualmente revisto e ampliado e junta-se-lhe, agora, uma notícia bibliográfica

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Laurence Sterne dizia que fez Tristram Shandy para desconcertar toda a crítica. E conseguiu

Quando os primeiros dois volumes de A Vida e Opiniões de Tristram Shandy vieram a lume, em 1759, o romance, enquanto forma literária moderna, ainda mal saía dos cueiros. E logo era abalado nas suas convenções e nos códigos que começavam a regê-lo por uma obra que, nos seus nove volumes (publicados até 1767), havia de deixar o género irreconhecível. Romance digressivo — “obra rapsódica” (p. 87), chama-lhe Sterne — cujas divagações se encadeiam entre si sem fim aparente, a obra-prima deste clérigo de origem irlandesa é tão minimalista no enredo quanto é máxima na gloriosa abóbada que o rodeia.

Pelo século XVIII, autores como Daniel Defoe, Samuel Richardson, Henry Fielding ou Tobias Smollett criavam para o romance um terreno firme, que fornecia a réplica perfeita a uma nova classe afluente (a burguesia) ávida de solidez. Apesar das peripécias prodigalizadas por algumas dessas linhagens ficcionais, ou do picaresco por que enveredavam certos praticantes delas, a normatividade imperava sobre o destempero. Por um breve lapso temporal, todavia, Sterne remexeu tudo isso. De tal forma foi notável a sua acção que, como costuma acontecer, muito se passou até que o seu legado fosse plenamente entendido. O que, realmente, só no século XX aconteceria. Autores como Virginia Woolf, ou James Joyce, por exemplo, ressalvaram claramente a importância decisiva de Sterne. “Sucede que”, diria Joyce, numa carta acerca do seuFinnegans Wake, “eu estou a tentar construir muitos planos de narrativa com um único propósito estético. Alguma vez leu Laurence Sterne?” A aproximação implícita entre os dois romances — derradeiros anti-romances, pela dimensão de radicalidade e experimentação que neles labora — é um dos indícios mais esclarecedores da modernidade de Sterne e de Tristram Shandy. Se Laurence afirmava numa carta: “Tristram Shandy, meu amigo, foi feito e formado para desconcertar toda a crítica”, Joyce dizia, em famosa resposta a um pedido de esclarecimento: “Incluí tantos enigmas e quebra-cabeças que vou manter os professores ocupados por séculos em torno do que eu queria dizer.” Também em Diário para Eliza, Sterne viria a falar do futuro “Anotador ou Comentador das minhas obras” (Antígona, 2000). A consciência da singularidade de ambos os autores, e das respectivas obras, torna-os peças irmanadas nas mais extremadas vanguardas da história da literatura. O que não quer dizer que, no seu próprio tempo, a produção de Laurence Sterne não tivesse conhecido o sucesso. Pelo contrário. Ainda que, num primeiro momento, o livro houvesse sido recusado por diversos editores, após uma primeira edição (de autor), Tristram pôs o autor na rota de um sucesso de contornos difíceis de conceber pelos padrões actuais. Sterne viria a tornar-se uma vedeta (aqueles dois volumes seriam prontamente reeditados). E embora luminárias como o Dr. Johnson mostrassem um entusiasmo diminuto, quando não a censura, o certo é que a fama do autor conheceu uma escalada impressionante. Contudo, a verdadeira dimensão transgressora e o traço de modernidade deste romance bombástico só muito lentamente viriam a ser reconhecidos. O século XIX não lhe conferiu o relevo devido — Walter Scott chamou a Tristram “não uma narrativa, mas uma colecção de cenas, diálogos e retratos”. Coleridge, esse crítico por excelência, poderá ter sido uma luminosa excepção. Segundo ele, a excelência de Sterne consistia em “tornar distintas na consciência as minúcias do pensamento e do sentir que parecem bagatelas, e contudo têm importância para o momento”. O que lhe teria permitido produzir “a novidade de uma peculiaridade individual”. Para o nosso presente, a contemporaneidade de Sterne é, todavia, um facto indesmentível. Também de minúcias se faz a trama urdida por este assombroso romance. Da casa da família e das mais miúdas incidências de uma domesticidade recheada de episódios pícaros e, naturalmente, servidos em clave digressiva. Walter Shandy, pai de Tristram, mas sobretudo Toby, o tio, constituem uma paleta de personagens notáveis pela sua excentricidade — “Walter e Toby”, como lembra Manuel Portela, “aparecem frequentemente encerrados na sua própria linguagem e nos seus pensamentos, mantendo constantes diálogos de surdos” (p. 31). Criações de um génio estarrecedor, a séculos de distância.

A subjectividade, e até relatividade, da consciência, e de noções como as de tempo, espaço e verosimilhança, são algumas das sementes que este romance prodígio logrou lançar sobre o que era então o solo quase virgem deste género literário. Ao comprimir e distender o tempo, tornando-o matéria maleável, não só antecipava as revoluções do modernismo como se tornava o primeiro autor a realmente fazer da psique humana um interveniente cabal na história do romance. Uma operação que viria a repetir em Uma Viagem Sentimental. Conforme ensina M. Portela, “A dilatação quase obscena do tempo e a fragmentação da história, embora muito menos usada do que em Tristram Shandy, continua a ter alguns momentos magníficos” (Antígona, 1999). No seu prefácio a Tristram — um exemplo notável de erudição e de clareza da exposição —, Portela chega mesmo a estabelecer uma comparação com a “manipulação da imagem do vídeo” (p. 24).

A Vida e Opiniões de Tristram Shandy

 começa por ser um título profundamente irónico. Por dois caminhos: a mofa a que submete a prática sua contemporânea de títulos intermináveis; o simples facto de a personagem principal e narrador nominal, Tristram, só no quinto capítulo ser “trazido a este nosso mesquinho e desastroso mundo” (p. 62). Até lá, desde o momento da concepção, atardado pelos mais hilariantes e eficazes expedientes (do ponto de vista da retórica do romance), tudo são contratempos. Da corda do relógio, que impede os pais Shandy de cumprirem o coito fixado no calendário conjugal, até à apresentação perorada do pai Shandy, passando por meticulosas digressões sobre o espermatozóide, ou homúnculo segundo a ciência setecentista. Este e outros aspectos são profusamente iluminados pelas diligentes anotações, comentários e esclarecimentos de Manuel Portela. Essa manipulação do tempo estende-se, como por contágio calculado, à segmentação de 

Tristram

. É só em pleno Volume III, já começado o seu Capítulo XX, que o autor inscreve o prefácio. E apenas porque, como diz, “Todos os meus heróis estão fora das minhas mãos — é a primeira vez que consigo arranjar um bocadinho” (p. 231). A inserção de páginas totalmente preenchidas a negro, ou de capítulos em branco, a quebra na ordem dos capítulos, ou ainda a aparição de parágrafos cravejados de asteriscos, seguem a mesma dinâmica. Como podemos ler nas páginas de 

Tristram

, “a maquinaria da minha obra é ela própria uma espécie à parte; são-lhe imprimidos dois movimentos opostos, reconciliando-se depois o que inicialmente parecia estar em desacordo. Numa palavra, a minha obra é digressiva, e é também progressiva” (p. 119).

Esta tradução, que é um prodígio apenas comparável àquele que lhe deu origem, está plenamente consciente de que “a matéria e a forma do livro procuram incansavelmente coincidir” (p. 51). A nova edição que a Antígona lançou, num único volume, é a materialização desse ditame, graças ao cuidado posto nos tipos, na disposição da mancha tipográfica, no respeito da pontuação oscilante da época, e de Sterne, e até na soberba encadernação criada para esta nova versão de um “clássico contemporâneo” (Manuel Portela, p. 49). O motivo presente na contracapa presta uma discreta homenagem ao grafismo da edição de referência de Sterne (The Florida Edition). 

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