A memória na política

A mortalidade em serviços de urgência, que ainda ninguém tinha medido, não demonstra variações que nos levem a pensar em descalabro.

Há condições prévias para os políticos terem sentido público de serviço e ética. Duas assumem uma relevância particular. Ter memória e ter vergonha. A leitura de textos recentes de ex-governantes da Saúde, referindo-se a um suposto caos nos serviços de urgência, confirma as piores suspeitas. Depois de saírem do governo, são atacados por amnésia e perdem pudor.

Os maiores picos de mortalidade já registados em Portugal aconteceram em 1999 (8514 óbitos), 1981 (5638) e 1997 (5533). Terão sido culpa dos ministros de então? O que há em comum entre os picos de 1997, 1999, 2009 (3631) e 2012 (4267). A crise, os “cortes”? Não, têm em comum o vírus da gripe A(H3) e frio.

A mortalidade em serviços de urgência, que ainda ninguém tinha medido, não demonstra variações que nos levem a pensar em descalabro. Todos os anos morrem entre 9 e 10 mil pessoas em serviços de urgência, incluindo os mais de 2000 que chegam cadáveres. Isto desculpa a possível existência de falhas no atendimento? Não. Todos os óbitos devem ser lamentados e estudados. Nenhuma morte é banal, seja qual for a idade ou o local onde ocorre. Falar de mortes, sem conhecer causas e circunstâncias, é oportunismo irresponsável.

Um apanhado de títulos dos invernos de 2007 e 2011: “Três dias no corredor à espera de ser internado”, “Homem de 73 anos morre à espera de ser atendido”, “Gondomar está a entupir a Urgência de Santo António”, “Gripe A provocou o caos no Hospital de Guimarães”, “Onze horas para saber se tinha pneumonia”, “Dia de caos em hospital”, “Falta de médicos condiciona tempos de espera nas urgências de Lisboa”, “Saúde à beira da ruptura”, “Carência social enche urgências”, “Cortes nas horas extras leva à ruptura”. A memória faz falta.

Entre 2011 e 2014 o número de médicos no SNS não parou de aumentar. Continuamos a contratar todos os médicos que terminam o curso, situação ímpar no quadro das licenciaturas em Portugal. Em 2009 entraram 1028 médicos para o primeiro ano de internato, em 2015 foram 1941. Em 2009 houve 1174 vagas preenchidas para internato de especialidade, em 2015 foram 1526. Não, não há cortes na contratação de médicos e agradecemos que nos digam onde esconderam os médicos que nos fazem agora falta e que não contrataram quando o deviam ter feito. Não havia? Mas agora há mais e contratamos todos.

“Atualização do levantamento nacional da capacidade instalada dos serviços de saúde, em situações normais de funcionamento, e da capacidade máxima (…)”, está escrito no Plano de Contingência em vigor, elaborado pela DGS em 2007, quando o PS nos governava. “As ARS devem averiguar onde podem estar recursos disponíveis (…), elencando todas as capacidades de hospitais e unidades de saúde do sector público, social, privado e militar”, escrevi há umas semanas. Onde está a diferença?

“As ARS devem fazer uma avaliação dos serviços de urgência privados e qual tem sido a procura e respetiva capacidade de resposta, para analisar uma eventual participação adicional destes serviços, caso seja necessário.” Repare-se no “eventual” e no “caso seja necessário”, foi o que eu determinei. “Definição de uma rede de cuidados em ambulatório (públicos e privados) que dê resposta nas diferentes fases da gripe pandémica” é o que consta no Plano de 2007 e com caráter determinante, sem “eventual” e sem estimativa prévia de necessidade. O Ministério da Saúde de 2007 já contava com os privados. A memória faz muita falta.

Já se percebeu que o PS de hoje resolveu seguir o discurso mais radical. Não admira, porque os socialistas na oposição, no que à Saúde diz respeito, ainda não foram capazes de apresentar uma ideia boa ou original. Já só falam do “SNS desmantelado”, o tal SNS de que não souberam cuidar e quase deixaram falir. 

 “Se não conseguirmos conter, disciplinar a despesa, será necessário certamente encontrar outro modelo de financiamento.” (Correia de Campos, Correio da Manhã, 18/2/2006) Seguimos o avisado conselho deste ministro que o PS despediu. Conseguimos conter e disciplinar a despesa, corrigimos o que herdámos, melhorámos indicadores, mantivemos o modelo de financiamento.

Tenho a vantagem de, profissionalmente, não precisar da política, ser independente nos meus pensamentos, ter convicções e dizer o que penso. Nunca me habituarei ao “politicamente correto”, à mistificação constante, à mentira desbragada. É lamentável o que algumas pessoas estão dispostas a dizer para ganhar uns votos. Confesso que me entristece.

Secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde

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