A ameaça do antiterrorismo

O que parece uma medida em defesa da Liberdade é, de facto, um procedimento limitativo da Liberdade, lesivo do seu exercício.

Que o terrorismo em curso é uma ameaça à nossa civilização parece ser coisa evidente; mas admitir que o antiterrorismo possa ser igualmente ameaçador já é bem menos evidente.

Na Alemanha, a proibição de uma manifestação do Pegida (movimento de extrema-direita), convocada para dia 19 de Janeiro, foi justificada pelas autoridades estatais por "receio de atentados terroristas". Horas depois, em França, foi anunciada proibição semelhante, sendo que a justificação dada pelas autoridades francesas é mais ampla, referindo que "a manifestação projectada não tem por objectivo apelar à condenação dos actos terroristas recentes mas inscreve-se claramente numa lógica islamófoba" (PÚBLICO online, 18/1/15). É esta, na óptica das autoridades, uma razão acrescida para o impedimento da manifestação.

Estas proibições, decretadas em dois dos principais países europeus, abrem um precedente que se me afigura muito preocupante. Espanta-me, por isso, observar sinais de regozijo em pessoas de esquerda, bem como, em geral, naqueles que se dizem democratas. Deviam mostrar inquietação tão grande ou maior do que a minha.

A partir deste momento, como se pode ver, a declaração policial de existência de risco de atentado terrorista “legitima” a suspensão do direito de manifestação, liberdade fundamental em que se estriba o exercício da cidadania. O que parece uma medida em defesa da Liberdade é, de facto, um procedimento limitativo da Liberdade, lesivo do seu exercício. Suspende um essencial direito constitucional. É isto admissível? Não, não é. Por esta via o antiterrorismo está a atacar um princípio civilizacional e a ser, também ele, ameaça à civilização. Porventura ainda mais preocupante é escutar o silêncio das elites.

A notícia das proibições deve ser associada a uma outra: a de que 42% dos franceses consideram dever evitar-se "ofensas ao profeta Maomé", como a primeira página da última edição do Charlie Hebdo. Ou seja, consideram dever praticar-se a autocensura como forma de combate ao terrorismo islâmico. Não é isto combater uma ameaça à civilização com outro tipo de ameaça a essa mesma civilização?

Vão ecoando com maior intensidade opiniões como esta: "Não deve haver liberdade para os inimigos da liberdade". Ameaçador. É assim, sempre assim, envergando o disfarce de amigo da liberdade, que o inimigo da liberdade se insinua. Típica opinião “terrorista”, se assim me posso expressar, por atentar contra a liberdade de expressão.

Temo que o recrudescimento da ameaça terrorista cause alteração no concebimento colectivo da Fraternidade, elemento essencial do brazão intelectual, político e moral da civilização. Alteração que é deturpação. A fraternidade – bem como a solidariedade ou a tolerância que lhe estão associadas – tem que se manter na esfera do universal. É símbolo universal. Um património cultural de que não nos podemos apropriar com o objectivo de satisfazer interesses europeus, conveniências locais. Nesta nossa Europa, a Fraternidade não pode nem deve ser construída contra o exterior, seja ele o mundo islâmico ou outro qualquer. Fazê-lo é estar a destruir um símbolo civilizacional, património da Humanidade, esvaziando o significado da divisa “todos os homens se tornam irmãos” que preside ao beethoveniano hino europeu.

Filósofo

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