Podemos brincar com o lixo?

A distopia de tauberbach é um grito de alerta pertinente, mas expressa-se numa peça superficial.

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Chris van der Burght

Alain Platel regressou a Portugal com uma peça que se inspira, com reverência, em duas realidades: a de uma mulher que viveu 20 anos num aterro (Estamira) e a de um coro de jovens surdos filmado por Artur Zmijewski (Tauber Bach).

Platel tem uma relação conhecida com pessoas em conflito como vimos em VSPRS (Teatro Camões, 2006), e a amizade com Bach é de longa data, como vimos em pitié! (CCB, 2009). Bach reaparece numa colecção eclética de versões: pelo dito coro, em acordeão, saxofone e órgão, ou entoadas pelos intérpretes.

tauberbach tem uma cenografia determinante com impacto plástico e dramatúrgico: o chão coberto de roupas a monte representa uma lixeira e é metafórico do abandono. Há também microfones suspensos que enfatizam a voz, o sufoco e a sensualidade que passam pelo palco.

A presença potente de Elsie de Brauw, que dá corpo à personagem central, abre o espectáculo: vagueando ela pragueja, uma existência marginal assombrada pela esquizofrenia e confinada à pobreza numa sociedade de consumo. À sua volta, meditabundos, os bailarinos constroem imagens com as roupas ou desaparecem no meio delas.

A distopia de tauberbach é um grito de alerta pungente e uma oportunidade para sentir a desventura alheia, por empatia, ou reflectir sobre as responsabilidades que nela temos. A desafortunada heroína vive dos (e nos) avultados desperdícios dos outros. É latente e pertinente o conflito entre a liberdade e a prisão da loucura, mas isso não impede que tauberbach seja uma peça arriscadamente superficial, cuja estrutura é quebrada, monótona e previsível.

Vemos desfilar esboços perspicazes de situações dramáticas que são, para alguns, o quotidiano: a mulher espancada, os nus chicoteados, o terrorista que decapita, o assédio sexual... A tensão é atenuada com piadas e ironias que fazem o público rir. De facto, a maioria convive com realidades confrangedoras assim: num zapping de notícias em TV, no twitter ou no cartoon.

Acompanhando a banda sonora, alternam regularmente falas da actriz com sequências de dança homogéneas, solos e duetos personalizados, e com uma mistura de registos. Convulsões interiores transformam-se assim em coreografias singelas ou arrebatadoras; mas estas técnicas de expressão, repetição e multiplicação, além de não serem novidade nos Ballets C. de La B., aqui são pouco eficazes.

Platel e a sua equipa têm uma capacidade óbvia, de mérito, para descobrir e mostrar relações simbólicas. Contudo, do cruzamento entre a linguagem de estilização e a realidade que a motiva, resulta uma estética ligeira e ambígua.

No curso da história a mulher irá "despir a roupa" que a isola do mundo e, nesse processo, personagem e actriz ficam mais vulneráveis e desinteressantes. O facto de a conciliação com o colectivo acontecer pela mão de dois homens - um que a limpa e outro que a seduz  - é contencioso numa leitura feminista. E o facto de a integração dela se reflectir na sua transição para um lugar periférico no espaço coreográfico é decepcionante do ponto de vista artístico.

Perspectivas diferentes trarão outras leituras como revelou a aclamação do público. Como é hábito, entre outras valências que dignificam o seu trabalho, Platel reúne um elenco emocionante, embora desequilibrado, em tauberbach. Se Bodin tem um potencial desperdiçado, Estaras vacila no desafio; Runa é impressionante e catalisa momentos de excepção, mas o seu protagonismo é desmedido e confere à obra uma carga sexual descabida. Pode-se brincar com o lixo, mas não é assim.

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