O que diz Marx em frente aos armazéns Marques?

Raramente uma peça é tão actual e directa.

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Aplausos cristalinos, que estalam nos ouvidos, ao invés das palmas baças e preguiçosas que tantas vezes soam nas salas de teatro, foi o que se ouviu no fim desta adaptação de Marx in Soho, do historiador norte-americano Howard Zinn, no auditório da Caverneira. A ideia é simples: Marx ressuscita em plena Baixa Pombalina, lê jornais portugueses e está a par da crise na Europa. Não que a peça precise de grandes actualizações. As coisas estão mais ou menos na mesma. Ou pior: em 2016, metade da riqueza mundial estará nas mãos de apenas 1% da população. Metade da riqueza mundial nas mãos de 1%. Toda a gente sabe. Nem que se escreva cem vezes num caderno as coisas mudam. Marx regressa para desmistificar o que se pensa sobre ele e reiterar os seus pontos de vista.

Raramente uma peça é tão actual e directa. No entanto, a personagem é histórica, a forma um monólogo, a composição convencional. O que a torna recomendável é que a perspectiva de Marx continua válida e o lado doméstico, familiar e pessoal do filósofo alemão surpreende, o actor interpretando com frescura e espontaneidade. O espectáculo não é um tratado filosófico cheio de axiomas e postulados difíceis de entender à primeira. Pelo contrário, o Marx que aqui se apresenta é o pai, marido e amigo, e as histórias que conta vão desde as provocações da mulher, Jenny, às bebedeiras com Bakunin. Assim como a imagem contemporânea de Cristo é carnal, esta figura de Marx é, em primeiro lugar, a de um homem. (A propósito, Marx diz que "O" conhece bem, e avisa: "Ele" não vai voltar.)

O aspecto lúdico prevalece, com o sentido de humor, as inconfidências e os sentimentos a virem ao de cima. Afinal, é a rir que a gente se entende. As frases de Marx são tão apelativas que soam como bordões. Este Marx está mais perto de um Jon Stewart do que de um professor. É o indivíduo concreto, que circulava nas ruas de Bruxelas, Paris ou Londres, entre os grandes armazéns e galerias e os pequenos cafés e tabernas, quem pára neste palco para nos falar, tal como se passearia na Baixa do Porto ou de Lisboa, conspirando e, ao mesmo tempo, pensando na conta da mercearia.

Existe uma expectativa grande que a crítica comente os aspectos ditos técnicos de um espectáculo, como a cenografia, a interpretação, o enredo, etc., atribuindo estrelas ao desempenho de cada um na sua profissão, propulsionando carreiras. É apenas uma maneira de reduzir os críticos (e os artistas) ao papel de especialista, retirando-os do debate sobre o que é comum a todos. Mas não é precisamente sobre a comunidade que versa a maior parte do teatro dos últimos, digamos, cinco mil anos? De facto, quando um espectáculo é feito de maneira profissional, importa falar da experiência artística e cultural. O resto é matéria escolar.

Este espectáculo é de muito bom gosto. A luz, o som, o cenário e os figurinos estão impecáveis, são usados com sobriedade. A encenação é capaz de sugerir as várias cidades, épocas e pessoas ausentes. O actor tem presença, fantasia e sentido de ironia. A personagem é realista, a situação inverosímil (Marx não ressuscitará), e graças a essa contradição, a peça é desde logo dialética. Se estiver perto de si, não perca.

 

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