Um piano afinado pelo cinema

Convidado para pianista residente da Cinemateca Portuguesa em 2015, Filipe Raposo será uma constante no acompanhamento de filmes mudos ao longo do ano. A pretexto da primeira sessão, no dia 29, com um filme de D. W. Griffith, estivemos com ele num passeio pela relação entre música e cinema.

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Filipe Raposo
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Vertigo, de Alfred Hitchcock
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Barry Lyndon, de Stanley Kubrick
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Aurora, de F. W. Murnau
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Anticristo, de Lars von Trier

Ao gravar o seu revelador álbum de estreia, First Falls (2012), Filipe Raposo punha lado a lado a influência de autores clássicos como Bach e Schubert, a importância da música tradicional portuguesa presente nos ecos das adufeiras de Monsanto e o jazz em trio de piano colhido junto de Keith Jarrett ou Brad Mehldau.

Mas nas frestas dos temas, agrafadas às citações de Schubert ou aos destinos das secções improvisadas, discretamente encontravam-se homenagens subterrâneas ao cinema de Stanley Kubrick, Andrei Tarkovski ou François Truffaut. O Trio Opus 100 (1828) de Schubert activava no músico não apenas a vénia a um dos compositores que revolucionaram o curso da música mas igualmente a imagem de Barry e Lady Lindon à luz das velas, a uma mesa de casino, trocando olhares de desejo (Barry Lyndon). Kubrick ter-se-á fixado na composição de Schubert para a cena depois de ouvir todos os discos de música do século XVIII que descobriu sem encontrar um tema amoroso com o potencial trágico oferecido pelo Trio.

Esta atenção extrema ao detalhe, fonte de fascínio de Filipe Raposo pela obra de Kubrick, constitui uma das principais razões para mencionar o realizador como uma das suas maiores inspirações musicais. “Há realizadores que me marcaram e me influenciaram esteticamente naquilo que faço hoje como artista”, admite ao Ípsilon a partir de Estocolmo, onde se encontra a terminar um mestrado em Jazz e Performance. “Seria errado dizer que as influências que tenho como compositor derivam exclusivamente de outros compositores e afirmo que derivam também do cinema.”

A devoção pelo cinema de Kubrick, em especial, transparece não apenas nessa passagem em First Falls mas também no entusiasmo com que menciona o facto de o realizador ter passado “dois anos à procura de locais para fazer Barry Lyndon” ou com que comenta o recurso a películas e lentes específicas com o objectivo de usar o mínimo possível de luz artificial. “Tanto o tema principal do Händel, Sarabande, como este Trio de Schubert, são temas que poderiam ser conhecidos de um público ligado às salas de concerto”, reflecte o pianista. “Há uma espécie de missão do Kubrick em divulgar compositores, como o Ligeti, que usou no Shining, no Eyes Wide Shut e no 2001 – Odisseia no Espaço, ou o Penderecki. De repente, eram ouvidos por milhões de pessoas em todo o mundo e, de outra forma, seriam compositores de minorias.”

Se a sombra de Kubrick se faz sentir em First Falls, o realizador não faz, naturalmente, parte do lote de filmes mudos que Filipe Raposo acompanhará ao piano durante o ano de 2015, enquanto músico residente da Cinemateca Portuguesa. A primeira sessão acontece na próxima quinta-feira, 29, com True Heart Susie, de D. W. Griffith. Griffith faz parte de um núcleo duro de autores a que foi habituando as teclas do seu piano desde que, em 2004, se deu o primeiro convite da Cinemateca para ilustrar sonoramente as exibições de cinema mudo, a par de F. W. Murnau – “é um dos realizadores com que mais me identifico”, confessa; “Aurora, Fausto ou Uma Rapariga da Cidade são filmes que me marcaram muito e tive oportunidade de acompanhar” – e de Viktor Sjöström. “Depois, com a crise, cortaram com os acompanhamentos ao vivo, embora tenha continuado a fazer alguns na Cinemateca Júnior. Agora, em 2015, o novo director da Cinemateca [José Manuel Costa] decidiu voltar ao acompanhamento de filmes mudos e fui convidado para músico residente.”

A prática na Cinemateca Júnior foi-lhe permitindo desenvolver algumas relações de intimidade com obras específicas. Nos casos de Steamboat Bill Jr., de Buster Keaton, e O Circo, de Charles Chaplin, as suas contas por alto devolvem números a rondar as 30 ocasiões em que acompanhou a cada um. A ponto de conhecer intimamente cada cena, respondendo em tempo real, “como se estivesse sincronizado com o filme. “Nestes filmes de carácter cómico”, diferencia, “acho que pode haver esse tipo de acompanhamento mais colado à cena. Mas a música nunca deve sobrepor-se à imagem no cinema mudo. Está apenas a servi-la.” Não hesita por isso em afirmar que “é importante saber quando retirar as mãos do piano”, com a consciência de que uma cena pode sair mais valorizada pela sua inacção. Este respeito absoluto pelos filmes leva-o a ter sempre presente o cuidado de não tornar a sua participação redundante. Nas obras de Murnau, exemplifica, por conterem desde logo a linguagem do expressionismo alemão, desde logo percebeu que “não precisava de carregar esse expressionismo, mas apenas aflorar aquilo que já está presente.”

A memória emocional

Olhando para trás, Filipe Raposo vai apanhando pistas de uma estreita ligação entre música e cinema no seu próprio passado. Foi graças a Round Midnight, filme de Bertrand Tavernier protagonizado pelo saxofonista Dexter Gordon que aos 10/11 anos teve no jazz uma epifania que lhe mudou a vida. E foi nas aulas com o compositor Eurico Carrapatoso, fundamental no seu percurso formativo, mostrando-lhe tanto Jimi Hendrix como Bach, que tomou contacto com a técnica que o professor apelida de “corte cinematográfico”, comparando a passagem de uma cena para outra no cinema à análoga transição de motivos rítmicos, por exemplo, em A Sagração da Primavera, de Stravinsky. “É curioso que estas linguagens musicais surjam precisamente no século XX quando o cinema aparece. Não sei se por influência ou não do cinema, mas o facto é que existem estes recursos técnicos comuns às duas linguagens.”

O olhar arguto capaz de estabelecer nexos entre as duas artes e de destrinçar sugestões narrativas cirurgicamente colocadas por cineastas na utilização da música conduz-lhe o discurso para Kubrick, mas também para o seu uso criterioso no cinema de Lars von Trier. Em Melancolia, o lançamento do motivo inicial faz-se com Tristão e Isolda, de Wagner, “um exemplo emblemático da História da música em que o chamado ‘acorde de Tristão e Isolda’ simboliza a passagem do romantismo tardio para a modernidade e anuncia a tragédia”. “Lars von Trier apropriou-se desse anúncio trágico e usa-o precisamente no prólogo a avisar-nos que aquilo vai acabar mal.” Já na cena inicial de Anticristo, refere, com o casal Charlotte Gainsbourg / Willem Dafoe copulando em slow-motion ao som da ária de Händel Lascia ch’io Pianga, ao mesmo tempo que o filho avança na direcção de uma janela aberta, “essa morte como acontecimento trágico que marca toda a narrativa exige um contraponto entre o nascimento, a concepção, e a morte”. “São momentos de síntese da humanidade que acho brilhantes em termos cinematográficos, onde a música tem um papel importantíssimo. Para quem não conhecia aquela ária e viu o filme, ela ficará para sempre na sua memória emocional.”

No que respeita a memórias emocionais, Filipe Raposo cita a cena do chuveiro de Psico, de Hitchcock, como paradigma absoluto de relação instintiva entre música e imagem. “Basta-nos o primeiríssimo ataque das cordas na região aguda para sabermos imediatamente de que filme se trata e activarmos todo o leque de memórias associadas ao filme”, diz. “A música em cinema é muito poderosa neste sentido.” E em poucos casos terá alcançado um vínculo tão perfeito à linguagem cinematográfica como na colaboração entre Hitchcock e o compositor Bernard Herrmann. “A leitura emocional e artística que ele fazia dos filmes e das imagens do Hitchcock é simbiótica. Até em Os Pássaros, o seu único filme sem banda sonora, Herrmann foi convidado para fazer o desenho de som. Em Vertigo, na cena maior do Hitchcock em que não existem diálogos, são cerca de 21 minutos sem diálogos. Aquilo que seria a destruição de qualquer filme não o é porque a música cumpre o papel de condução da narrativa. É um exemplo brilhante. Não consigo imaginar o Hitchcock sem o Herrmann.”

É essa, de facto, a aspiração das notas aplicadas a cada cena – que um filme possa (parecer) perder a respiração se lhe for roubado o tapete musical.

 

Barry Lyndon, de Stanley Kubrick

Devoto pelo cinema de absoluta minúcia de Stanley Kubrick, Filipe Raposo homenageia o realizador no seu primeiro álbum, ao incluir uma passagem do Trio Opus 100, de Schubert, tema essencial na banda sonora de Barry Lyndon.

Aurora, de F. W. Murnau

“Murnau é um dos realizadores com que mais me identifico”, confessa o pianista em relação aos autores de cinema mudo que tem acompanhado ao piano. Foi com o expressionismo alemão de filmes como Aurora que descobriu a importância de a sua música não poder sobrepor-se à cena.

Anticristo, de Lars von Trier

Os grandes compositores souberam e sabem sintetizar momentos da História da música, afirma. “Tudo aquilo que estava antes deles passa a estar contido e desenvolvido através da sua obra. E Lars von Trier faz o mesmo apropriando-se da sua música”, como na cena inicial de Anticristo, ao som de Händel.

Vertigo, de Alfred Hitchcock

Para o pianista, “a leitura emocional e artística” que o compositor Bernard Herrmann fazia dos filmes de Hitchcock “é simbiótica”. Em Vertigo, numa das mais famosas cenas do cinema que dispensam o diálogo, “a música cumpre o papel de condução da narrativa”. “Não consigo imaginar o Hitchcock sem o Herrmann”, admite.

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