As Variações de Brion

A obra do fotógrafo italiano Guido Guidi leva-nos à última obra do arquitecto italiano Carlo Scarpa: um túmulo que celebra as variantes da vida

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Os comissários Joaquim Moreno e Paula Pinto optaram por circunscrever a exposição sobre o Túmulo Brion às imagens de Guido Guidi, que percorreu o recinto ao longo de duas décadas Guido Guidi

A exposição Guido Guidi/ Carlo Scarpa Tomba Brion coloca-nos num espaço entre fotografia e arquitectura. É também uma exposição que celebra a autonomia de ambas. Sendo uma exposição sobre um túmulo, celebra as variantes da vida. A obra do fotógrafo italiano Guido Guidi leva-nos à última obra do arquitecto, também italiano, Carlo Scarpa. Não se trata de um percurso, é antes uma aproximação. Não há nas imagens uma narrativa que explique a obra. O mistério permanece. A arquitectura da morte do Túmulo Brion proporciona a Guidi imagens sobre a sombra, a variação desta, a rugosidade do betão e a luz que irrompe momentaneamente e que se movimenta. A matéria da arquitectura, a memória e a passagem do tempo na obra de Scarpa são a fundação desta exposição. 

Os comissários Joaquim Moreno e Paula Pinto optaram por circunscrever a exposição sobre o Túmulo Brion ao olhar de Guido Guidi. Em Roma, no MAXXI em 2012, esta obra de Carlo Scarpa tinha sido mostrada com recurso aos desenhos originais do arquitecto e a várias camadas interpretativas da obra — a arquitectura, a matriz histórica, a questão simbólica, as biografias dos envolvidos e o contexto da encomenda. Também se incluíam as fotografias de Guido Guidi, actuando estas como mais uma camada sobre a obra do arquitecto. Na Garagem Sul do CCB, onde se apresenta uma exposição distinta sobre o mesmo tema, a estratégia é mais precisa e circunscrita. É a obra de Guidi a matéria que permite a entrada no recinto Brion. Também a única, no sentido em que não há desenhos ou maquetas. Essa entrada é tímida, introspectiva, e deve ser feita com tempo para se poder estar com os vários conjuntos de imagens. São dezenas de fotografias, colocadas em espaços com vários núcleos de imagens, sempre de aspectos parciais da obra. Ao centro, um corredor permite uma visão axial destes vários espaços. E não se deve esperar uma síntese, apenas variação. 

O recinto Brion foi construído no cemitério de S. Vito d’Altivole, actuando como extensão deste (as terras foram adquiridas para este propósito), rodeado de campos agrícolas na região de Treviso. Depois da morte do empresário Guiseppe Brion, o mentor da empresa Brionvega (uma indústria de rádios e televisões), Scarpa foi o arquitecto escolhido para desenhar o recinto. Entre 1969 e 1978, ano da morte do arquitecto, o projecto foi sendo desenhado e construído como um templo, ganhando uma densidade e lugar de destaque na carreira de Scarpa. Brion é uma obra de arquitectura sobre o tempo, que utilizou um tempo cronológico pouco convencional para a arquitectura contemporânea. 

O recinto funciona com vários edifícios no interior, que pretendem celebrar o tema da união conjugal da família e, obviamente, da vida e da morte. O projecto de Scarpa utiliza até o tema de um arco que protege e acolhe o sepulcro do casal Brion. Curiosamente, Guido Guidi quase não se aproxima desta peça, preferindo outros momentos do projecto menos exuberantes. Dominam o betão e, sobretudo, a água e os vários enquadramentos do céu que os muros vão desenhando. A escassez da fotografia parece partir na direcção oposta da obra de Scarpa. O desenho do recinto Brion parece ambicionar autonomia — como acontece genericamente na obra de Scarpa — desligando-se do lugar e do programa. Há variações de escala no desenho, do pequeno detalhe ultrapormenorizado até ao grande gesto de elementos em betão suspensos, cujo objectivo para o conjunto não se clarifica. É como se o desinteresse pela síntese em Scarpa, nesta obra que parte em todas as direcções, fosse reconduzido a uma ideia de arquitectura pela obra de Guidi. E nesse sentido esta exposição é muito eficaz na sua conexão com a obra. 

Guido Guidi percorreu o recinto de Brion ao longo de quase duas décadas. Terá começado em 1996 e desde então o seu trabalho tem sido uma forma de indagação e revisitação desta arquitectura. Mas a relação com o trabalho de Carlo Scarpa é muito anterior e remonta ao período em que Guidi frequentou o Instituto Universitário de Veneza (IUAV) quando era estudante de Arquitectura. A disciplina esteve sempre presente na sua obra, que oscilou entre o interesse pelo banal, pelos resíduos do mundo pós-industrial até às obras da arquitectura erudita do século XX. Independentemente do tema, Guidi mostra as fotografias sem recurso a ampliações — são provas de contacto — e promove uma relação de proximidade entre as imagens e o espectador. A espectacularidade não é uma característica deste conjunto de imagens. 

O conjunto de fotografias que agora se mostram ocupam esse último filão das obras eruditas. Mas o olhar de Guidi não se detém exclusivamente na vocação de templo a que Scarpa aspirou. Nem se detém na vocação monumental que esta arquitectura da morte possui na génese da encomenda. Ou na especulação formal de troços do edifício. Mesmo a carga simbólica é amenizada pela relação prosaica da arquitectura com os elementos — a luz, a sombra, o envelhecimento dos materiais e a vegetação que cresceu, o brilho e o reflexo da água. O trabalho de Guidi oscila entre todos estes temas. São as variações possíveis dos vários espaços interiores e exteriores o denominador comum de todas estas fotografias. Valoriza-se o processo e celebra-se uma lentidão interessada. Nas provas de contacto, há por vezes traços feitos com grafite sobre a imagem — apontamentos sobre questões perspectivas ou reflexões escritas. Esta é uma exposição sobre uma arquitectura da sacralização olhada de um modo dessacralizado.

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