É do caraças, matar 160 homens

O que mais desaponta em Sniper Americano é que Clint já fez isto muito melhor e, mais grave, outros já fizeram isto muito melhor.

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Num dos momentos fulcrais de Imperdoável, a personagem de Clint Eastwood sussurrava, entre dentes, “it’s a hell of thing, killing a man” ou, em tradução livre, “é uma coisa do caraças, matar um homem”, assim conferindo ao acto de matar, de tirar uma vida, um pathos descomunal.

Mais de vinte anos depois (o tempo passa, Imperdoável é um filme de 1992) encontramos Clint a dirigir um filme sobre um sniper que existiu realmente, Chris Kyle, herói de várias comissões no Iraque a seguir à invasão de 2003, tido como o mais certeiro sniper da história do exército americano, com 160 mortes confirmadas e 255 prováveis. Nunca diz, em todo o filme, que é “uma coisa do caraças, matar 160 homens”. Mas há um momento, já perto do final, em que Clint se lembra do que disse em Imperdoável, e numa cena em que Kyle introduz o filho nas artes da caça ao veado, põe a personagem a dizer “it’s a hell of thing, killing a beating heart”. É uma coisa do caraças, matar um coração que bate.

Clint Eastwood, há muito tempo, é o realizador americano que mais se auto-cita e que mais se “revê”. Mas essa referência ao Imperdoável parece só um rebate de consciência, volvido em piscadela de olho para conhecedores. Sniper Americano podia, frisamos o tempo verbal, podia ser um filme sobre o acto de matar, sobre o acto de matar a sangue-frio, com precisão, distância e limpeza (e esqueçamos os “lados”, a justiça ou injustiça das causas, fiquemos só com essa mecânica essencial do acto de matar). Infelizmente não é, e deve muito mais à hagiografia de um “herói americano” do que a outra coisa qualquer — sendo como é, adaptado da autobiografia de Kyle e realizado na ressaca do assassínio do próprio Kyle, sucedido em 2013, numa carreira de tiro, às mãos de um veterano de guerra perturbado. Um dos problemas do filme é essa ausência de complexidade moral, justamente um dos aspectos essenciais na obra de Clint, e algo que ele domina com mão de mestre (ou dominava, até esse prodigioso Gran Torino que tarda em ter sequência à altura). Falámos do Imperdoável para esse pathos do acto de matar; mas, para a questão do herói de guerra, quão complexas eram, por exemplo, as personagens e as ideias de um filme que Clint realizou há bem poucos anos, As Bandeiras dos Nossos Pais?. O que desilude em Sniper Americano é — mais uma vez, como se está a tornar frequente — esse apagamento de Clint face à complexidade da sua própria obra, substituída por uma versão “lisa” que parece ignorar o lado sombrio — o lado sombrio do acto de matar mesmo se por uma causa justa, o lado sombrio daquilo que se faz em nome, por exemplo, do patriotismo. Há sugestões de que esse lado sombrio deva passar pelo rosto angustiado do protagonista, Bradley Cooper. Lamentamos, mas não conseguimos lá ver nada disso, Cooper é ele próprio um dos actores mais “lisos” (um “mono liso”, passe a graçola) do cinema americano contemporâneo, uma prova de como é hoje difícil encontrar actores à altura dos heróis fordianos ou fullerianos de antanho, à altura de Roberts Mitchums ou Roberts Ryans.

O que vale no filme, o que justifica vê-lo? Certos golpes de asa: o raccord que abre para o flash-back, ao início (e que faz deste o segundo Clint consecutivo que leva brevemente a pensar no Caçador de Cimino), ou a tempestade de areia que resolve uma situação de combate lá mais para a frente. Mas sobretudo, aqueles instantes, também bastante breves, em que o filme parece apontar para aquilo que não é e se mantém aí, nessa zona difusa, apenas pelo tempo suficiente para nos deixar a pensar que o próprio Clint hesita entre ficar com este filme ou partir para outro. As cenas da infância de Kyle, em ambiente de texana severidade redneck, como se o filme prometesse uma análise, também severa, das raízes e do contexto daquele mais fundo e mais “telúrico”, mas também mais ideológico, patriotismo americano. Ou aqueles momentos em que os potenciais alvos de Kyle se sucedem na sua mira telescópica, numa espécie de paranóia suscitada pela natureza específica da guerra do Iraque, em que um inimigo cheio de bombas à cintura tanto pode ser uma mulher, uma criança ou um velho de bicicleta, e estar em todo o lado. Mas esse filme já foi feito, foi o Hurt Locker de Kathryn Bigelow. É finalmente o que mais desaponta em Sniper Americano: Clint já fez isto muito melhor e, mais grave, outros já fizeram isto muito melhor. 

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