Documentos carbonizados há quase 2000 anos foram “lidos” pela primeira vez

Os rolos de papiro de Herculano, queimados e esmagados durante a erupção do Vesúvio que também destruiu Pompeia, poderão finalmente revelar os seus segredos.

Todas as letras do alfabeto grego menos duas foram identificadas na experiência (linha de cima de cada bloco de imagens)
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Todas as letras do alfabeto grego menos duas foram identificadas na experiência (linha de cima de cada bloco de imagens) Vito Mocella et al.
Pormenor do papiro analisado
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Pormenor do papiro analisado Emmanuel Brun
O papiro analisado tem 16 centímetros de comprimento
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O papiro analisado tem 16 centímetros de comprimento Daniel Delattre/Biblioteca do Instituto de França

Uma equipa internacional de cientistas acaba de realizar uma autêntica façanha, decifrando, pela primeira vez, algumas sequências de letras e fragmentos de palavras contidas em rolos de papiro calcinado – algo até aqui considerado tecnicamente impossível. Os resultados abrem o caminho à leitura de textos antigos dos quais não existem cópias, com o potencial de “melhorar o nosso conhecimento da literatura e da filosofia da Grécia antiga”, escrevem os autores num artigo publicado terça-feira na revista Nature Communications.

Os papiros que serviram para realizar esta inédita experiência provêm da única biblioteca da antiguidade clássica que chegou até nós com o seu recheio de centenas de rolos cuidadosamente distribuídos pelas suas prateleiras. Foram descobertos em 1754 na chamada Vila dos Papiros, uma casa senhorial em Herculano – uma das várias cidades destruídas em 79 d.C., juntamente com Pompeia, pela explosão do Monte Vesúvio, ao pé de Nápoles. E alguns deles, que foi possível desenrolar parcialmente, são hoje atribuídos ao filósofo epicuriano e poeta Filodemo, que viveu no primeiro século antes da nossa era.

Os papiros estão em muito mau estado – como é fácil imaginar, considerando que foram soterrados por toneladas de cinzas vulcânicas ardentes. Vistos de fora, parecem bocados de carvão. E são também extremamente frágeis: não admira portanto que as tentativas que têm sido feitas ao longo de quase três séculos para os desenrolar se tenham saldado, essencialmente, pela sua destruição pura e simples, levando os especialistas a desistir dessa via.

O que Daniel Delattre, do Instituto de Investigação e de História dos Textos, em Paris, e colegas em França e Itália conseguiram agora fazer foi justamente mostrar que é possível ler estes manuscritos sem quase lhes mexer.

A própria natureza do material dos papiros e da tinta utilizada conspiram para aumentar a dificuldade da leitura dos papiros pelas mais avançadas técnicas não invasivas de obtenção de imagens, nomeadamente utilizando raios X.

Os raios X são mais ou menos absorvidos pelos materiais que atravessam – e é esse contraste que é explorado para visualizar o interior do corpo humano através da tomografia computadorizada de raios X. E nos últimos anos, tem surgido uma variante dessa técnica – dita de tomografia de raios X por contraste de fase – que é muito mais eficaz do que a primeira na visualização em pormenor das estruturas dos tecidos moles do organismo, que absorvem menos radiação. Os autores do estudo pensaram que esta técnica poderia aplicar-se aos papiros de Herculano.

Porquê? Porque a fibra vegetal carbonizada dos papiros e a tinta de carvão utilizada na antiguidade são materiais demasiado semelhantes – e o contraste gerado pela absorção dos raios X é insuficiente para os distinguir. A técnica por eles utilizada aproveita de facto um outro tipo de diferença que pode ser detectada iluminando uma amostra com raios X: o facto de estes raios serem desviados de maneira diferente quando atravessam os diversos componentes do material em causa, independentemente da sua composição química.

Todavia, essa técnica não poderia funcionar se os diversos componentes estivessem misturados – ou seja, se a tinta tivesse sido absorvida pelas fibras do papiro. Mas neste aspecto, os cientistas foram “ajudados” pelas características dos documentos em causa: a tinta de carvão não penetrava nas fibras de papiro, explicam os autores, o que fazia com que as letras ficassem como que pousadas no suporte vegetal. E foi precisamente esse ligeiríssimo relevo (da ordem dos 100 milésimos de milímetro!) que permitiu detectar as diferenças de fase dos raios X com o poderoso feixe gerado pelo ERSF – Sincrotrão Europeu, em Grenoble (que permite uma resolução precisamente dessa ordem). “As letras observadas no papiro, que têm dois a três milímetros, são completamente reveladas pelo processo de visualização”, escreve a equipa no seu artigo.

Mesmo assim, dado o comprimento da folha de papiro (até 15 metros), a espessura ínfima de cada camada enrolada e o tamanho das letras – mais o facto de o esmagamento dos papiros ter sem dúvida distorcido a escrita –, nada garantia o resultado.

Mas a experiência foi um sucesso: numa amostra de um papiro de Herculano enrolado, os cientistas conseguiram detectar todas as letras (menos duas) do alfabeto grego. E até sequências de letras que poderão ser palavras que significam “cairia” ou “diria”.

“Vitória! Conseguimos ver as letras! Vemos letras gregas distorcidas! Hurra! Incrível! ”, lembra-se ter exclamado Daniel Delattre (citado num comunicado) quando viu surgir as letras pela primeira vez.

A precisão do resultado é tal que, devido a certas particularidades caligráficas, os cientistas pensam que o texto do papiro “revelado” terá sido escrito pelo próprio Filodemo. Chegaram a essa conclusão comparando essas letras com as de um outro papiro da mesma biblioteca (esse sim, desenrolado), intitulado Da crítica franca, estudado com outras técnicas e que se sabe ser daquele filósofo (ver imagem). “Algumas letras da [nossa amostra] apresentam, na parte esquerda da sua base, uma pequena ‘cauda’ decorativa, que está sempre presente [no papiro de Filodemo], mas não é frequente na caligrafia de outros papiros da colecção”, fazem notar nos autores.

Será possível um dia desemaranhar todas as letras escritas nas inúmeras camadas destes rolos, reconstituindo na íntegra o texto que escondem? “Sim, com tempo e com os recursos suficientes”, respondeu ao PÚBLICO o co-autor Vito Mocella, do Instituto de Microelectrónica e de Microssistemas de Nápoles.

E não só será possível ler estes rolos, concluem os cientistas, mas também outros que ainda não foram descobertos – “incluindo, talvez, uma segunda biblioteca de papiros latinos, situada num nível inferior, ainda não escavado, da Vila [dos Papiros]".


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