Regresso ao Porto pós-Abril, um campo fértil para a ecologia

Membros de vários grupos do movimento ecologista criados no Porto a partir de 1975 celebram este ano quatro décadas passadas sobre esse período.

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Nuno Oliveira, José Carlos Marques, Rosa Oliveira, Ana Caldas, Pedro Vieira, com Jacinto Rodrigues e Franklin Pereira na Fundação José Rodrigues, casa das comemorações em 2015 Maria João Gala

Viram Abril como uma oportunidade para pôr Portugal na rota do desenvolvimento sustentável. Num país em revolução, mas em que a ecologia era um estrangeirismo, fora de Lisboa e dos meios académicos, dezenas de cidadãos organizaram-se em 1975, no Norte, para tentar mudar o mundo. Juntaram-se no Grupo Autónomo de Intervenção Ecológica do Porto (GAIEP), ou em organizações como a Pirâmide, o Núcleo Português para o Estudo e Protecção da Vida Selvagem (NPEPVS) e outras que tentaram pôr o equilíbrio entre o homem e a natureza na agenda pública. Quatro décadas depois, assumem que algo do que defendiam foi incorporado no discurso oficial. Mas muito, lamentam, ficou por fazer.

Defendiam a preservação da vida selvagem. Lutaram contra a energia nuclear. Propunham um renascimento rural contra o modelo de desenvolvimento urbano que a europa já questionava e os portugueses, libertados do Estado Novo, ainda ansiavam “sem capacidade crítica”. Escreveram e publicaram para ensinar e divulgar modelos de vida e fontes de energia ditas então “alternativas”, com apelos à utilização da energia eólica ou solar, que só recentemente se instalaram nas nossas paisagens. Almejaram uma ecologia total, que partia do equilíbrio entre espírito, corpo, sociedade, planeta, conceitos pelos quais alguns deles se deixaram cativar nas experiências do exílio, durante o Salazarismo.

Juntámo-los à mesa na Fundação José Rodrigues que será, este ano, em vários encontros e numa grande exposição em Setembro, a casa das memórias do período entre 1975-1982, o de maior efervescência nos movimentos ecologistas no norte. Jacinto Rodrigues, catedrático jubilado da antiga Escola Superior de Belas Artes do Porto, Franklin Pereira, seu pupilo de então na ESBAP e membro da cooperativa Pirâmide, José Carlos Marques coordenador dos Cadernos de Ecologia e Sociedade da Afrontamento, e fundador, à entrada deste século, da Associação Campo Aberto e Nuno Gomes Oliveira, histórico director Parque Biológico de Gaia foram sócios do GAIEP. E este ano, eles juntaram-se a Ana Caldas e Rosa Oliveira para organizar a comemoração dos 40 anos passados desde esses momentos.

Como recorda Nuno Gomes Oliveira, no Portugal de então era frágil a consciência ecológica. Para lá dos esforços para o salvamento da Mata do Solitário, na Arrábida, que estiveram na origem da fundação, em 1948, da Liga para a Protecção da Natureza – muito ligada a meios académicos – até ao fim do regime, o país tinha feito pouco mais do que criar “à pressa” o seu primeiro e único parque Nacional, na Peneda-Gerês, em 1971, para ter algo a mostrar ao mundo, na Conferência do Ambiente de Estocolmo do ano seguinte. Enquanto isso, no Norte ainda, os esforços do professor Santos Júnior para a instituição legal da Reserva Ornitológica do Mindelo (1958), a primeira área protegida do país, esbarravam na falta de interesse e de meios, situação ainda hoje não resolvida, apesar da criação, há poucos anos, da Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde.

 As utopias pela mão de Jacinto Rodrigues
Nuno Oliveira tinha 19 anos quando se cruzou com outros dos elementos do GAIEP em 1975, por força da partilha da sede desta nova organização com o NPEPVS, no qual trabalhava a tempo inteiro, ganhando salário quando havia dinheiro para o pagar. No GAIEP militava Jacinto Rodrigues, irmão do escultor José Rodrigues, que escreva a obra Urbanismo e Revolução e que, regressado do Exílio em França, introduzira no curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto seminários sobre formas alternativas de construção, concepções urbanísticas disruptivas das teses vigentes e eco-tecnologias desenvolvidas por vários autores em diversos países e que sonhava pôr em prática num país com demasiada gente sem uma casa condigna onde viver.

O  grande anfiteatro da ESBAP era usados para plenários de comissões de moradores do Porto à noite. De manhã, os estudantes vinham assistir às lições que, depois, experimentavam no terreno, junto da população. No seu blogue pessoal, onde publicou um extenso testemunho desses anos, a lista de exemplos é extensa: “apresentei, com a ajuda de diapositivos, os projectos de Ledoux, o Falanstério de Fourier, o Familistério de Godin, a aldeia industrial de Owen, a distopia de Meunier e a utopia de William Morris. Continuei esse trabalho revelando projectos e realizações de Bruno Taut, de Ebenezer Howard, do modernismo reformista da cidade industrial de Tony Garnier e dos edifícios sociais de Berlim e Viena, dos anos 20, que eu próprio visitara durante a minha formação”.

Na plateia, um jovem de 17 anos, Franklin Pereira, bebia sofregamente os ensinamentos do “guru” e grande divulgador da obra do precursor da ecologia em Portugal, o Padre Himalaya. Mas, com as convulsões da academia, em pleno PREC, este professor de educação visual, hoje a viver em Braga, não acabaria o curso. Atraído pela filosofia oriental, saiu da escola para se dedicar, a tempo inteiro, à Pirâmide, a Cooperativa Cultural para o Desenvolvimento de uma Sociedade em Harmonia com o Universo que, no Porto, ficou conhecida pelo restaurante na Rua do Breyner cuja ementa espelhava já as preocupações macrobióticas dos seus membros, muito exóticas, por cá, naquela época.  

Por ali, muitos portuenses terão experimentado pela primeira vez alimentos como o miso, a soja ou o tofu. E terão lido a Alternativa, revista editada nos primeiros números em parceria com o GAIEP e depois se tornou publicação da Pirâmide. Tinha uma capa onde pontuava uma ilustração do artista e docente Pinto Coelho, utopia de uma ESBAP alargada, pelas encostas, até ao Douro, com turbinas eólicas, campos cultivados e construções de estranhas geometrias, as domes e zomes.” É um exemplo do que defendíamos, dessa vontade de rebentar com as fronteiras da escola e de fazer dela um espaço de experimentação de modelos alternativos”, descreve Jacinto Rodrigues.

A luta anti-nuclear
Lá dentro, os artigos ilustravam bem os caminhos que os seus autores – entre eles Jacinto e Franklin – pretendiam seguir e alertavam para problemas como os efeitos do aerossóis  no Ozono, a poluição alimentar ou, tema que entrou na agenda nacional nessa época, a energia nuclear. O n.º 3, de Outubro de 1977, anunciava a letras gordas um extra, o poster do Festival pela Vida, contra o Nuclear, organizado em Fevereiro do ano seguinte pelo jornal Gazeta das Caldas e diversos grupos de Lisboa, contra a construção de uma central nesta localidade de Peniche. “Mais vale ser activo hoje do que radioactivo amanhã”, gritava-se num dos slogans de então, que acabou por falar mais alto que as intenções da EDP.  

José Carlos Marques, outro dos membros do GAIEP, estava em França, no final da década de 60, com o Maio de 68 ainda a bem presente, quando teve o seu primeiro contacto com as questões ecológicas e a luta anti-nuclear, nas páginas de um jornal de que todos ouvimos falar por estes dias, o Charlie Hebdo. Pierre Fournier, colunista do semanário que sucedera ao Hara Kiri Hebdo, faleceu em 1972, mas um texto seu, Reanimar uma Velha aldeia, acabaria por ser incluída, em Junho de 77, numa colectânea de textos, o Manifesto por um Renascimento rural, organizada pelo português. Que regressado ao país, participava activamente na divulgação destes ideais, através dos Cadernos de Ecologia e Sociedade, editados pela afrontamento, e noutras publicações ao longo dos anos.     

Esta ideia do renascimento do mundo rural levou Franklin Pereira a deixar o Porto e a Pirâmide para tentar, numa aldeia do interior de Lagos, construir uma quinta auto-sustentável, seguindo algumas das utopias que ouvira das lições de Jacinto Rodrigues e a sua vontade de produzir os seus próprios alimentos. Foi projecto que durou pouco, recorda este professor de artes visuais hoje a viver em Braga. Mas alguns dos que por ali passaram – o arquitecto Pedro Cavaco foi o único a lá ficar – acabaram por se envolver em negócios ligados à agricultura biológica, e aos produtos para o regime macrobiótico, explica este homem que já visitou a Índia sete vezes e que toca cítara.

Um balanço negativo
Estes movimentos nascidos no pós-25 de Abril, com o cunho vincadamente libertário, foram-se diluindo nos anos seguintes, quando os seus protagonistas perceberam que o regime seguiria outros caminhos. Em 1982 nasceu o partido “Os Verdes”, e a ecologia chega ao parlamento em coligação com o PCP. No seio do PSD, surgira o Grupo de Estudos do ordenamento do Território e Ambiente, o GEOTA, que mais tarde se haveria de autonomizar como associação, antes do aparecimento da Quercus e da FAPAS, entre outras organizações que passaram a fazer companhia à histórica Liga para a Protecção da Natureza.

O país criou entretanto vários parques naturais, viu finalmente crescer o peso da agricultura biológica e até já se pratica a biodinâmica – cujos preceitos foram divulgados em Portugal por Jacinto Rodrigues. Nuno Oliveira viu um projecto do Núcleo Português para o Estudo e Protecção da Vida Selvagem em Gaia, o Parque Biológico, ser adoptado pelo município, em 1985, e passou as últimas décadas a fazer crescer os espaços de contacto entre o homem e a natureza no concelho da margem sul do Douro e apoiando projectos semelhantes noutros municípios. Na transição para este milénio, José Carlos Marques fundou a Campo Aberto, associação que lutou, logo nos seus primeiros anos, por um Parque da Cidade do Porto sem betão e que agora celebra os movimentos que lhe antecederam. Mas quando olham para Portugal, nenhum destes homens consegue fazer um balanço positivo.  

O desencanto começa desde logo com as questões ligadas ao estilo de vida, e à sociedade que resultou destes 40 anos de democracia num país que, como recorda José Carlos Marques, preferiu investir em auto-estradas do que na educação dos seus cidadãos, mesmo os daqueles que têm responsabilidades perante os outros. Franklin atira um exemplo para a mesa: “Sabemos imenso sobre alimentação, conseguimos elevar a dieta mediterrânica a património da humanidade, mas na minha escola, para celebrar o Dia Mundial da Alimentação, a nutricionista da empresa que gere a cantina pôs no menu um prato de hambúrguer e batatas fritas”.

“O que se conseguiu não chega”, avisa Nuno Oliveira, lembrando que Portugal é um dos poucos países do mundo onde não existem guardas florestais, o que nos coloca ao lado de nações subdesenvolvidas. O director do Parque Biológico critica o facto de hoje se confundir ambiente com abastecimento de água e tratamento de lixos e esgotos, “que são serviços urbanos”, descurando-se, por completo na sua perspectiva, a área da conservação e protecção da natureza, submetida a anos de sub-financiamento. Nenhum deles deixou de acreditar nas virtudes das suas propostas desse pós-25 de Abril. “O país não se compara ao de há 40 anos. Mas continuamos com o mesmo dilema por resolver: como encontrar uma sociedade que satisfaça os cidadãos, sem dar cabo de tudo”, sintetiza José Carlos Marques.

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