Uma ameaça existencial à OPEP

Juan Pablo Pérez Alfonzo, ministro das Minas e Hidrocarbonetos do novo Governo democrático da Venezuela, era um homem com uma missão clara quando se sentou na tribuna de honra do Congresso do Petróleo Árabe que o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser convocara para o Cairo, naquela primavera de 1959. Os Estados Unidos, a braços com um histórico excesso de produção, tinham acabado de fixar um rígido sistema de quotas para a importação de petróleo estrangeiro, com o intuito de proteger os produtores americanos. Era uma medida devastadora para a Venezuela, que exportava para o vizinho do norte mais de 40% da sua produção. Perez Alfonzo ainda tentou propor à administração Eisenhower a criação de um “Sistema Petrolífero Ocidental” que protegesse os países ocidentais dos efeitos do petróleo barato do Médio Oriente. Mas os burocratas de Washington nem se dignaram recebê-lo. Humilhado, decidiu negociar com os árabes.

No Cairo, o ministro venezuelano não teve dificuldades em convencer o negociador e futuro ministro saudita Abdullah Tariki, um geólogo que havia estudado no Texas, qual era a melhor solução para um mercado inundado com petróleo barato. Tendo vivido e advogado nos EUA, Perez Alfonzo conhecia bem a experiência da Texas Railroad Commission, a estrutura que conseguira pôr ordem na indústria petrolífera do Texas nos anos negros dos 10 cêntimos por barril. Era necessário criar uma Texas Railroad Commission mundial. A 14 de setembro de 1960, e depois de quatro dias de reuniões, os representantes dos maiores países exportadores – Arábia Saudita, Venezuela, Irão, Iraque e Kuwait – anunciavam, em Bagdad, a criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo com o objetivo principal de “regular a produção para defender o preço do petróleo”.

O peso político e comercial da OPEP não parou de crescer nos anos seguintes. Em 1973, a organização controlava mais de 50% da produção mundial de crude e as suas reuniões causavam ansiedade e pânico nos mercados e chancelarias mundiais. A grande transformação viria a ocorrer com o desenvolvimento das praças financeiras para a compra e venda de petróleo e produtos refinados, atividade que nos anos 70 não ia muito além de 3% da produção mundial. Primeiro em Londres, em 1984, e depois em Nova Iorque (Nymex) e Singapura, os grandes bancos internacionais foram retirando à OPEP boa parte do seu poder sobre o mercado. Ao lado dos barris físicos, surgiram os chamados ‘barris de papel’: futuros, opções, produtos estruturados e outros instrumentos financeiros. A ‘financeirização’ das matérias primas chegava ao petróleo e em breve tornaria o mercado de barris virtuais dez vezes maior do que aquele que levava à entrega efetiva de crude. 

A vertiginosa descida do preço a que temos assistido nos últimos seis meses – um verdadeiro “contra choque”, só comparável ao que se passou em 1985/86, em plena guerra Irão-Iraque - deve-se em parte à abundância da oferta e ao relativo sucesso das políticas de eficiência energética, designadamente nos EUA e na Europa. Mas o chamado excesso de oferta não atingiu valores que justifiquem tão profunda e rápida queda. Há dias, a Agência Internacional de Energia informou existir um excesso de 1,8 milhões de barris num mercado que vende 90 milhões de barris por dia. A ser assim, estaremos a falar de um desequilíbrio pouco significativo e em linha com o que se tem verificado nos últimos anos. O que se passa então?

O que se passa é que a Arábia Saudita – o único país da OPEP com esse poder – não quer “atravessar-se” e compensar o desequilíbrio existente no mercado através da redução da sua produção diária de dez milhões de barris. O seu ministro do Petróleo disse-o sem qualquer ambiguidade: “Não faz qualquer sentido os países da OPEP reduzirem a sua produção, mesmo se isso tiver como consequência uma descida do preço até aos 40 ou 20 dólares por barril”. Em coerência com estas afirmações, diz-se que o país está a oferecer descontos relevantes a certos compradores asiáticos, no intuito de não perder quota de mercado. Há sinais por todo o lado da existência de uma crescente vaga de competição e disputa pelos melhores compradores, travada entre alguns dos atuais 12 membros da OPEP. Certos operadores falam já de uma guerra de preços fratricida como a de 1985/86. Em face desta situação, alguns desses países deverão estar a perguntar-se para que serve um cartel que não controla os preços, nem as quotas de produção dos seus membros.

O fosso há muito existente entre o Irão e a Venezuela, por um lado, e a Arábia Saudita e seus aliados do Golfo, por outro, tem vindo a tornar-se cada vez mais cavado. A entrada do Iraque na órbita do Irão desde a queda de Saddam Hussein em 2003 foi um elemento desestabilizador no equilíbrio de forças no interior da organização. Nas últimas semanas, o presidente venezuelano Nicolás Maduro tentou, sem sucesso, alterar a posição inflexível de Riad. O seu homólogo iraniano chegou a afirmar, há dias, que "os países que planearam a baixa do preço contra outros países vão arrepender-se”. São afirmações duras e invulgares mas que emprestam cada vez mais credibilidade aos que veem na queda em espiral dos preços uma conspiração da Arábia Saudita contra o Irão e a Federação Russa, designadamente pelo papel destes no apoio ao regime sírio do presidente Bashar al-Assad.

A OPEP está confrontada com sérios desafios cujas soluções dificilmente poderão esperar pela reunião agendada para junho. A situação atual no seu seio não é sustentável por muito tempo,  tanto no plano comercial, como no político. Dir-se-ia que a guerra civil árabe se projeta nas tensões entre os dois principais blocos de produtores árabes. A atitude da Arábia Saudita de inundar o mercado com toda a sua máxima produção é indicadora de que está decidida a levar o seu jogo até ao fim. Quando o fez, em 1986, acabou por ganhar e o Irão foi forçado a ceder. Mas - sabemo-lo hoje - a OPEP esteve a um passo da desintegração. Vamos ver qual será o resultado desta vez.

Advogado e docente universitário

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