Velhos recursos inesgotáveis

A Casa da Música abriu o Ano Alemanha, no último fim-de-semana, com o compositor Helmut Lachenmann em destaque, e também com o regresso de Pedro Burmester.

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Helmut Lachenmann Maria João Gala

Dos inúmeros criadores do nosso tempo, é difícil adivinhar quais são os que perdurarão na memória das gerações vindouras como grandes mestres; mas de todos os que já assumiram o papel de compositores em residência na Casa da Música (CdM), o alemão Helmut Lachenmann (n. 1935) será dos que menos dúvidas oferece quanto ao seu lugar cativo nas futuras narrativas da História (encontrando paralelo talvez apenas em Jonathan Harvey – sobretudo pelo caso singular que este representa entre os compositores de nacionalidade britânica – e Salvatore Sciarrino, “compositor em associação” em 2013, igualmente original e que deixou já marcas indeléveis nas gerações seguintes).

Foi em torno do inesgotável trabalho de Lachenmann que a CdM programou a abertura oficial do “Ano Alemanha”, propondo um estimulante fim-de-semana com os seus agrupamentos residentes.

Talvez não tenha sido a música deste compositor germânico o que encheu a Sala Suggia na sexta-feira, mas juntá-la à presença de um dos ícones da cidade  o pianista Pedro Burmester  foi, no mínimo, uma estratégia inteligente que muito deve ter impressionado o compositor.

Baldur Brönnimann assumiu a direcção da primeira obra escutada, a abertura de O Franco Atirador, de Weber, que a Orquestra Sinfónica do Porto (OSPCdM) executou de forma limpa, mas sem particular entusiasmo.

De seguida foi Matthias Herrmann quem subiu ao palco para dirigir uma obra que terá certamente surpreendido boa parte do auditório, avaliando por alguns comentários escutados no decurso da sua interpretação, bem como pela proliferação de nervosas tosses que, por pouco, não integraram o discurso musical. Schreiben (2003) é um belíssimo exemplo da “música concreta instrumental” de Lachenmann, que a OSPCdM conseguiu recriar com algum à-vontade e de forma muito convincente. A exploração dos instrumentos tradicionais de forma não convencional exponencia as suas potencialidades, jorrando uma torrente de novos significantes que nesta obra são subtilmente combinados com algumas expressões musicais que remetem directamente para a tradição. 

O público recebeu a obra de forma simpática, tanto mais que logo de seguida teria finalmente oportunidade de ouvir Pedro Burmester, de regresso à CdM para o primeiro de um conjunto de espectáculos em que apresentará a integral dos Concertos para piano de Beethoven.

Brönnimann assumiu novamente o comando da OSPCdM para acompanhar Burmester no Concerto nº 4 op. 58, de Beethoven. A partir da secção de desenvolvimento do primeiro andamento, Burmester passa inequivocamente das notas à música, arrastando os ouvidos menos sensíveis a fenómenos meramente sociais. É com esse balanço que no segundo andamento se apodera da partitura, conduzindo-a a um lugar muito pessoal e de rara beleza, ainda que tomado de liberdades quase excessivas no que ao tempo respeita. Se, por um lado, foi notória a preocupação do maestro em respeitar o intérprete (estabelecendo com este frequente comunicação visual), facto é que, nesse mesmo Andante con moto, solista e orquestra pareceram não raramente abordar assuntos distintos e sem pontos de contacto. A orquestra ataca síncrona o terceiro andamento, refazendo-se para um final mais convincente, não obstante um ligeiro desvio na afinação dos clarinetes.

No sábado, o Remix Ensemble (RE) foi recebido com casa cheia graças a outra inteligente estratégia da CdM, que não passa apenas por associar música “incontestável”, como a de Wagner, à de um criador maior cuja linguagem requer, ainda assim, uma certa abertura de espírito. De Siegfried, o Despertar de Brünnhilde e Dueto de Amor (com o soprano Brigitte Pinter e o tenor Jeff Martin) e, de O Crespúsculo dos Deuses, a Cena da Imolação, ambos na versão de Jonathan Dove/Graham Vick: esta foi a música que iniciou e terminou o concerto que, no seu interior, reservava mais duas obras excepcionais e representativas do universo lachenmanniano, as quais haviam já sido interpretadas pelo RE em 2007.

Pensada como parte integrante da ópera Das Mädchen mit den Schwefelhölzern, a obra ...zwei Gefühle..., Musik mit Leonardo (1992) apresentada com o próprio compositor enquanto narrador, carrega reminiscências de Luigi Nono, despertando uma escuta activa. Menos exuberante no resultado tímbrico, Mouvement (-von der Erstarrung) propõe igualmente uma escuta repleta de detalhes que contrariam as expectativas. Terá esta música conquistado os numerosos ouvintes que este fim-de-semana tenham ouvido Lachenmann (e, eventualmente, o RE) pela primeira vez? Em Outubro teremos oportunidade de o verificar, quando o RE voltar a fazer soar música do compositor alemão.


 


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