Livin’ la vida loca

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Há um lado literal, por assim dizer, em toda a montagem teatral, que salta à vista imediatamente, ainda antes da encenação, da dramaturgia ou das personagens de qualquer peça. A olho nu, que vemos no palco? Neste caso, um dos melhores actores da sua geração, Miguel Borges, secundado por um músico que interpreta, Gil Dionísio, e uma actriz que canta, Sara Ribeiro, bem, por sinal; depois, dois actores do Teatro Oficina, de Guimarães, Diana Sá e Emílio Gomes, talentosos; um coro de quatro performers e o duo musical Lavoisier.

É com esta trupe que João Garcia Miguel, um encenador que fez da vanguarda a sua vocação, desde o Ginjal até aqui, e tendo por companheiro de lide Marcos Barbosa, neste caso, encara de frente A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca, ou, como lhe chamaram, La Vida es Sonho. Na tela que é a cena, são estas as tintas. A equipa é maior, claro, figurinos, cenário, luz, som, mas, visto que concorrem para o mesmo fim, fiquemos agora por aqui. Que fazem eles em palco? Esperneiam-se, gemem, gritam, choram, revoltam-se, desejam-se, atiram-se ao chão. É isso que sobressai. Que significa tudo isto?

O enredo da peça e o sentido do texto poucas vezes são apresentados com clareza, o que desgasta a atenção e paciência do espectador, julgo eu, mas existe um desejo de revolta contra as imposições do pai tirano, expresso pelos corpos dos actores, que ganha forma e movimento em cena, e essa rebeldia, sim, é clara. Quem não conhecer o original, fica às cegas. Mas o original talvez seja o que menos interessa neste espectáculo. João Garcia Miguel tem outras coisas para dizer. A dúvida sobre se tudo não passará de uma ilusão é substituída pela certeza de que sim, nada é verdade, sublinhada pelo narrador, Sara Ribeiro, mestre de cerimónias de cabaré que abre e encerra o show.

A revolta popular que depõe um rei e põe outro no seu lugar, e que, pelo menos para os contemporâneos de Calderón, crê-se, reforçava a confiança na divina providência, é tratada, no mínimo, com descrença. Sobram a festa pela festa, de resto um dispositivo cénico recorrente em muitos dos espectáculos teatrais, e a energia física confundida com o erotismo dos corpos. É a forma possível da liberdade, neste espectáculo. Implícitos na celebração estão o sacrifício e exibição dos corpos. Alegria, não.

Levantada a hipótese da revolta popular, o compère (apresentador) pós-moderno pergunta se é altura de matar o pai. Logo a seguir, surge a alusão a Vejam Bem, de José Afonso. A revolução traga os seus heróis, vem nos livros, mas no caso português parece ter engolido também os filhos, na voragem dos anos setenta, oitenta e noventa. Miguel Borges, especialista na arte de mostrar o desespero dos descrentes, por um lado, e a resistência dos sobreviventes, por outro, é bem o retrato dessa fuga para a frente de uma geração que foi traída pelos próprios pais, e a quem pouco mais restou que curtir la vida loca.

 

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