Fixem apenas este nome: liberdade

Começou com uma anedota, acabou em crime. Em Dezembro, o que o mundo discutia era um ataque de hackers à distribuidora do filme americano The Interview, expondo-lhe vários segredos, isto porque o dito filme mostrava um plano (caricato, como o próprio filme) para assassinar o líder da Coreia do Norte (que, como se sabe, é eterno, logo não assassinável). Mal sabia esse mesmo mundo que em Janeiro iria estar a discutir, perplexo e indignado, um ataque de terroristas islâmicos à sede de um jornal satírico francês, tão provocador como inofensivo, assassinando ali e noutros locais de Paris 17 pessoas. Se, por mera hipótese, em lugar de hackers norte-coreanos ou pró-norte-coreanos furiosos, um comando armado tivesse entrado na sede americana da distribuidora disfarçado de comitiva de empresários orientais, e despachado ali mesmo, a tiro, vários quadros da empresa, provavelmente estaríamos a exibir cartazes a dizer “somos todos Sony”. Porém, como o lugar do crime foi outro, embora o móbil fosse o mesmo, ou seja, o ataque à liberdade de expressão, milhões exibiram cartazes solidários dizendo “Je Suis Charlie”. Mesmo aqueles que nunca tinham ouvido falar de um jornal satírico francês chamado Charlie Hebdo.

Claro que, como sucede nestas coisas, depois dos primeiros impulsos de solidariedade, vieram não só as dúvidas como os remoques. Desde os que fizeram questão de dizer que não eram “Charlie” (bravo pela dissidência, a liberdade também é isso) até aos que foram “Charlie” só para o mundo os ver, pungentes, de cabeça baixa, absortos numa realidade bem distante da do grupo de corajosos lunáticos que fazia, e ainda faz, apesar do massacre, aquele semanário. E houve, como sempre há, os que vieram lembrar-nos de que, mais do que ser “Charlie” devíamos ser a mulher bombardeada na Síria, a criança morta na Palestina, a população esfaimada na Etiópia, o sem-abrigo das Américas, o reformado condenado à miséria algures no mundo, o aluno a quem faltam refeições pela manhã e mesmo assim é arrastado para a escola, etc.

É verdade, não faltam males para arregimentar. Mas, como a melhor forma de não resolver problema algum é sempre misturá-los todos, convém voltar atrás nesta história. À volta de uma mesa, num prédio parisiense, estão várias pessoas a discutir como fazer um jornal. Papéis, lápis, a confusão do costume. Pela sala, irrompem dois indivíduos vestidos de negro e assassinam a tiro, meticulosamente, alguns dos “escolhidos” para abate, completando depois a “obra” com várias rajadas de kalashnikov.

Foi isto que aconteceu: responder com balas a ideias. Como se virassem do avesso a máxima atribuída a Voltaire, mas que ele nunca escreveu (foi incluída num livro inglês, em 1906, para exemplificar o pensamento voltairiano): em lugar de “Desaprovo o que dizes mas bater-me-ei até à morte pelo teu direito a dizê-lo”, teremos: “Desaprovo o que dizes e bater-me-ei até à tua morte (mesmo que isso envolva a minha) contra o teu direito a dizê-lo.” Há os que assim pensam e agem e os que, assim pensando, aprovam em silêncio esses inomináveis crimes de outros.

A liberdade de expressão é, de facto, uma coisa difícil de suportar por todos os poderes, grandes ou pequenos. Mas o que através dela é dito, ou escrito, ou desenhado, por mais que pareça insultuoso ou desagradável (excluindo os óbvios e explícitos convites ao crime, mas para isso funcionarão leis, tribunais e polícias), devia poder ser integrado na sociedade e regenerado nela. Por mais incómodos que causem as edições do Charlie Hebdo ou as diatribes racistas e anti-semitas de um tipo como Dieudonné, se as sociedades modernas não souberem lidar com a liberdade de expressão tal como ela é, sem salvaguardas de carácter religioso, político, rácico ou outras, a liberdade de expressão será um embuste. E a democracia idem. O problema, como já se percebeu, não está na liberdade de expressão, está no fanatismo e na intolerância dos que se sentem de algum modo melindrados com o que outros dizem ou escrevem. Se a cada susceptibilidade, venha ela de onde vier, surgir uma mordaça, estamos conversados.

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