Somos todos Charlie?...

Fui dos que sentiram uma sensação de náusea pela manipulação que tomou conta dos discursos oficiais.

Há invernos assim. Perante os dois massacres de Paris (os doze mortos no Charlie Hebdo, os quatro na mercearia kasher), fui dos que (e sei de muitos) rapidamente sentiram juntar-se ao horror pela pura abjeção de toda aquela violência e crueldade uma sensação de náusea pela manipulação que rapidamente tomou conta dos discursos oficiais, dos comentários improvisados (e, por isso, talvez mais sinceros) que os media reproduziram, desde o cidadão comum (“eles andavam a pedi-las”, “com a religião não se brinca” - tese que o Papa reproduziu há dois dias atrás) ao especialista encartado (“ataque aos valores ocidentais”, “estamos em guerra”, “deixemo-nos de correção política: o Islão é uma religião violenta”). Somos muitos os que, como a escritora marroquina-americana Laila Lalami, nos sentimos cansados. “Cansados de que um desenho de Maomé cause mais raiva que a efusão de sangue”, mas também “cansados de que contextualizar seja visto como desculpar.” (The Nation, 10.1.2015)

Comecemos por aqui: os que querem responder aos jihadistas com uma guerra santa usam os mortos de uma revista ateia e provocadora que eles nunca leram para demonstrar que estamos em guerra. (É verdade: até o PM francês, Manuel Valls, já o diz...) E numa guerra não se gasta tempo em contextualizações, não se dão argumentos ao inimigo! Naftali Bennett, um antigo membro das forças especiais israelitas que é ministro da Economia, veio a Paris, como muitos outros, para se fazer ver na chamada Marcha republicana e aproveitou para deixar uma lição aos europeus: a de que continuamos a ser “ingénuos” quando nos esforçamos para explicar o terrorismo, a violência política; “debaixo do politicamente correto”, diz ele, insultando toda a racionalidade democrática, “há um desejo de compreender os motivos destes terroristas.” Ou seja, explicar é justificar. “Eu não quero entendê-los, quero derrotá-los” (Euronews, 11.1.2015), diz Bennett, como se uma coisa fosse incompatível com a outra. Paris é como Gaza, a Europa está, portanto, em guerra; o problema é que ainda não o percebeu. Bennett e Netanyahu estão em campanha eleitoral e queriam ser filmados de braço dado com os franceses em luto, ou aclamados na Grande Sinagoga de Paris por judeus franceses, legitimamente aterrorizados por se verem arrastados, a milhares de kilómetros, para a guerra de ocupação da Palestina, ou para todas as guerras em que os franceses se meteram nos últimos anos (Mali, República Centroafricana, Líbia, Afeganistão, Iraque, Síria, …). Sendo certo que foram os jihadistas de Paris que  escolheram uma simples mercearia como teatro guerra, não se julgue que terão sido os únicos a associar esse ato a um contexto internacional que, quando lhes não convém, os governos acham inaceitável invocar para explicar atentados. Foi também o que fez Valls, ao definir as muitas aventuras militares da França em África e no Médio Oriente como “a resposta da República” que, à moda americana, se dá tanto em França como “onde os grupos terroristas se organizam para nos atacar, nos ameaçar, aos nossos interesses e aos nossos compatriotas (…), em nome da Europa e dos seus interesses estratégicos.” (Le Figaro, 14.1.2015)

Há 60 anos atrás era assim que teria falado um PM francês a propósito da Argélia ou da Indochina. “Nós não conduzimos uma guerra de religião, mas sim um combate pela tolerância, a laicidade, a democracia, a liberdade e a soberania dos Estados.” Pois, deve ter sido por tudo isto que, domingo passado, governantes de profundas convicções e práticas democráticas, partidários incansáveis da liberdade de expressão (como Rajoy, que impôs a “Lei mordaça” em Espanha), da soberania dos Estados (como Netanyahu que ocupa a Palestina, que só na última operação militar em Gaza matou 17 jornalistas), da tolerância (como o PM húngaro, Viktor Órban, um antissemita cuja relação com a imprensa livre é quase tão boa quanto a que tem com a minoria cigana e as oposições políticas) desfilaram de braço dado com Hollande e Valls. Não é preciso ser-se mais subversivo que o Papa Francisco para, a propósito do "atentado de Paris, pensar na muita crueldade humana”, presente “em tanto terrorismo, tanto o isolado, como o de Estado" (El Mundo, 8.1.2015). É verdade: o de Estado.

É curioso que Valls se tenha esquecido que nenhum dos assassinos veio de um qualquer país onde neocolonialmente diz que anda a combater o mal: os três eram franceses, nascidos em França. Não: os “jovens [islamistas] radicalizados não são a vanguarda ou os porta-vozes das frustrações da população muçulmana”, como bem recordou Olivier Roy (Universidade Europeia, Florença). Eles estão “em rutura deliberada tanto com o Islão dos seus pais como com as culturas das sociedades muçulmanas. Eles inventam o Islão que opõem ao Ocidente, vêm da periferia do mundo muçulmano - e em especial do [próprio] Ocidente”. Acima de tudo, eles “movem-se numa cultura ocidental da comunicação, da encenação da violência (…), praticam a auto-radicalização na Internet, procuram uma Jihad global, não se interessam pelas lutas concretas do mundo muçulmano (Palestina)” (Le Monde, 10.1.2015). 25% dos voluntários do Estado Islâmico são convertidos. Adotaram, aos 25-30 anos, um integrismo islâmico que partilha os mesmos valores da vaga de reacionarismo moral, político e cultural na qual coincidem católicos tradicionalistas, evangélicos das Américas, judeus ortodoxos: o horror à liberdade, o desprezo pela mulher, a homofobia, a xenofobia (de que a islamofobia e o antissemistismo são apenas exemplos).

Foi tudo isto que invocou Anders Breivik em 2011 para matar, à bomba e à metralhadora, não 17, mas 77 pessoas na Noruega. 33 eram menores de 18 anos. Outras 329 ficaram feridas. A grande maioria jovens militantes socialistas, partidários, segundo Breivik, de um multiculturalismo que põe em causa o Ocidente. Condenações internacionais não faltaram, é verdade, e muita indignação retórica contra um populismo a que se não quer chamar racismo neofascista - mas não se viu em Oslo nenhuma concentração de líderes mundiais em protesto. Afinal, é muito mais fácil criar esta vaga de consenso contra uns fanáticos dispostos a matar em nome do Islão do que contra fanáticos que o fazem em nome do Ocidente. Breivik não era filho de imigrantes muçulmanos como os irmãos Kouachi e Coulibaly, dele não se podia dizer que não era um dos nossos - ao contrário dos três franceses que, diz-se, não tinham conseguido merecer sê-lo... Por algum motivo, o Partido do Progresso, no qual Breivik fez a sua formação política, entrou pela primeira vez no governo norueguês, pela mão da direita tradicional, dois anos apenas depois do massacre. Reivindica-se do “liberalismo clássico”, de uma certa conceção do “Ocidente” de “tradição cristã”. De resto, ele partilha dessa nova tendência da direita populista europeia, onde, historicamente, nasceu e se desenvolveu o antissemitismo genocida dos sécs. XIX e XX, de apoiar indefetivelmente as guerras de Israel contra os palestinianos. A única explicação para semelhante guinada política só se pode encontrar no preconceito antiárabe e na islamofobia que os une agora a todos.

Ah!, é verdade: o PP norueguês proclama-se fã de Thatcher. Não deve, portanto, haver perigo.

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