A guerra do Alvarinho acabou numa paz inesperada

O Minho viveu em 2014 uma das mais apaixonadas querelas rurais dos últimos anos, a propósito do alargamento da menção da casta Alvarinho a toda a região dos Vinhos Verdes. A Assembleia da República e a Comissão Europeia envolveram-se nos combates. Após dura negociação, Monção e Melgaço tiveram de ceder os privilégios aos seus vizinhos.

Foto
A exclusividade de Monção e Melgaço acabará dentro de seis anos Nelson Garrido

Ao longo dos últimos doze meses os cerca de dois mil produtores de vinho dos concelhos de Monção e Melgaço mantiveram uma guerra improvável em defesa de um património genético que acreditam ser da sua inteira propriedade. Geração após geração, os agricultores desses dois concelhos encostados ao rio Minho aproveitaram as condições naturais das suas encostas e o potencial da casta Alvarinho para fazerem vinhos brancos com aromas exóticos, corpo de veludo, uma mineralidade única e um potencial de envelhecimento notável.

O mundo, entretanto, mudou, as regras europeias também e a globalização levou o Alvarinho a todas as regiões do país e a muitas áreas produtoras de outros continentes. Impotentes para evitar a expansão da grande casta branca do país, os agricultores de Monção e Melgaço foram conseguindo proibir que os seus congéneres da sua própria região, os Vinhos Verdes, a usassem nos seus vinhos de categoria superior. Esta semana perderam a batalha decisiva.

Dos dois campos do conflito ouviram-se dezenas de argumentos a favor e contra o alargamento da produção de Alvarinho a todas as zonas do Vinho Verde – hoje, um agricultor de Penafiel, por exemplo, pode plantar a casta, mas se quiser declarar o seu vinho como “Alvarinho” não pode usar a denominação de origem “Vinho Verde” mas apenas a indicação geográfica “Regional Minho” - uma espécie de segunda divisão dos vinhos do Noroeste, com menor valor económico. Em cima da polémica que opôs dois concelhos ao resto da região estiveram noções ancestrais de domínio exclusivo do património genético, bairrismo de pendor rural, preconceitos de classe entre produtores de um vinho que se diz de classe mundial e aqueles que – consideram os primeiros - se dedicam ao “volume” e ao “granel” e, principalmente, interesses de natureza económica. “Foi uma polémica muito marcada pela emoção e pela afectividade”, resume Anselmo Mendes, o enólogo que se tornou num dos emblemas do Alvarinho.

Um dia, sabia-se, a exclusividade da menção do Alvarinho nos Vinhos Verdes dos produtores de Monção e Melgaço teria de acabar, mas, em vez de esperar pela imposição legal, a Comissão de Vitivinicultura da Região (CVRVV) optou por um processo de discussão interna. Em Dezembro de 2013, o debate abriu-se a todos os produtores e desde logo ficou claro que o combate seria duro e difícil. Manuel Pinheiro, presidente da CVRVV fez o papel de capacete azul da ONU e deixou que a discussão seguisse o seu próprio caminho. “Mais do que corrigir problemas, o fundamental era planear o futuro e aí a região acabou por se unir”, diz agora Manuel Pinheiro. Mas, até chegar a este ponto, foi preciso remediar a desunião. Principalmente depois de duas propostas de resolução do PS e do PSD terem sido votadas na Assembleia da República exigindo que se mantivesse a exclusividade do uso da menção Vinho Verde Alvarinho aos produtores dos dois concelhos encostados à margem do rio Minho.

Se até então fora difícil gerar consenso no seio de um grupo de trabalho com dez elementos da produção e do comércio, a intervenção dos partidos agravou ainda mais a situação. “Os políticos aproveitaram esta polémica para ter um pouco de palco”, lamenta Anselmo Mendes, que integrou o grupo de trabalho. Mas quando se julgava que o debate estava condenado a eternizar-se ou a esvaziar-se na indefinição, a Comissão Europeia entra em cena e, em Outubro do ano passado, notifica Portugal que as restrições à rotulagem de Alvarinho são incompatíveis com as regras comunitárias. Acto contínuo, Bruxelas exige uma resposta do Estado até ao final deste mês. Nesta fase, a polémica deixara de ser um conflito bairrista. Tornara-se um assunto que o Governo teria de resolver.

Confrontado com o problema, o secretário de Estado da Agricultura, José Diogo Albuquerque, faz regressar o debate ao ponto zero e pede à CVRVV que volte a reunir as partes desavindas para encontrar uma solução até 15 de Janeiro deste ano. O grupo de trabalho volta a reunir-se. Mas, desta vez, o que estava em causa já não era o sim ou não ao alargamento. Os produtores de Monção e Melgaço sabiam que a sua causa estava perdida. O que importava agora era obter o máximo de concessões para acordarem o alargamento da menção Alvarinho a todos os vinhos com direito à denominação de origem “Vinho Verde”. Foi a essa tarefa que os membros do grupo de trabalho se dedicaram. No final da tarde de segunda-feira, o caderno de encargos para o futuro estava decidido. Todos votaram a favor, com excepção de Pedro Soares, representante da Quinta de Melgaço, uma empresa cuja maioria do capital está nas mãos da autarquia na sequência de uma dádiva de um ex-emigrante no Brasil, Amadeu Abílio Lopes, em 1996. Soares absteve-se.

O último fôlego
Numa última tentativa para travar um acordo, umas quatro centenas de habitantes do concelho de Melgaço deslocaram-se ao Porto para se fazerem ouvir junto do grupo de trabalho que ultimava o documento final.  "Temos que defender o que temos, porque em Melgaço não há fábricas, não há mais nada. O alargamento vai tirar aquilo que é nosso", dizia uma manifestante. O grão-mestre da Real Confraria do Vinho Alvarinho, José Afonso, protestava contra a “usurpação que a restante região quer fazer de um trabalho que foi desenvolvido na viticultura de Monção e Melgaço".

Na produção, os preços praticados parecem dar-lhes razão. Um quilograma de uvas Alvarinho pode valer facilmente mais de um euro em Monção e Melgaço, enquanto a mesma quantidade da mesma casta em outras zonas dos Vinhos Verdes se fica pelos 60 cêntimos e a produção com outras castas regionais vale, segundo Pedro Soares, da Quintas de Melgaço, entre 40 e 45 cêntimos. Só que esta valorização nem sempre tem os reflexos ideais no mercado. A produção da sub-região de Melgaço e Monção não tem sido capaz de acompanhar o dinamismo dos Vinhos Verdes, que à custa das suas ofertas de vinhos frutados, frescos e com um menor teor médio de álcool se tornou uma poderosa máquina de exportação (43,9 milhões de euros entre Janeiro e Outubro do ano passado facturados em 98 países). As vendas regionais de branco, tinto e rosado ascenderam no ano passado a mais de 52 milhões de litros de vinho – os Alvarinho ficaram-se pelos 1,4 milhões de litros.

Como consequência, enquanto na região se fala na necessidade de novas plantações para responder à procura crescente, em Monção e Melgaço têm-se registado excedentes que ajudam a explicar congelamento dos preços a níveis do ano 2000, na avaliação de Manuel Pinheiro. Melgaço e Monção têm atraído o interesse de grandes empresas nacionais, como a João Portugal Ramos, que tem o seu próprio Alvarinho, mas nem a crescente apetência pelos aromas desta casta promoveram grandes melhorias na situação. “Muitos dos Alvarinho mais baratos do mercado são de Monção e Melgaço”, sublinha António Guedes. Mesmo ao nível da qualidade, a discussão sobre o potencial desta sub-região é objecto de discussões. No concurso de 2014 entre os Alvarinho portugueses e galegos, realizado em Bruxelas, um dos dois vencedores da medalha “grande ouro” foi um vinho de Amares – o outro foi um espanhol. Mas entre a crítica especializada parece consensual que os Alvarinhos da Soalheira ou os criados por Anselmo Mendes atingem níveis de qualidade imbatíveis.

O acordo final do grupo de trabalho acaba por reconhecer que há um direito histórico dos produtores de Monção e Melgaço cuja extinção requeria medidas transitórias, compensações financeiras e distinções especiais. O fim da exclusividade acontecerá no prazo de seis anos. Até lá, os Alvarinho da sub-região vão receber meio milhão de euros por ano para se promoverem no exterior. E a sua produção vai poder continuar a ter direito a uma menção especial – inicialmente falou-se em Alvarinho Premium, mas a designação caiu. “Eles ganharam imenso”, diz António Guedes.

Anselmo Mendes concorda, em termos genéricos, mas teria preferido que a sub-região mantivesse um estatuto especial, uma espécie de denominação de origem própria dentro do chapéu dos Vinhos Verdes como existe na Borgonha em relação a, por exemplo, Montrachet. Pedro Soares anuncia que, para já, a polémica fica suspensa, mas lamenta que os produtores da sua região tenham agora de enfrentar a concorrência.

No final da polémica, sobra ainda a história rara de uma região vitícola portuguesa ter sido capaz de resolver uma questão com esta complexidade pelos seus próprios meios, sem ingerências de terceiros. “Chegou-se a um acordo mais cedo do que a maioria das pessoas pensava”, regozija-se Manuel Pinheiro. “O que conseguimos foi muito bom. A Comissão ficou mais forte”, nota António Guedes. Agora, sublinha o presidente da CVRVV, “há que olhar para a frente e concentrar-nos no que interessa: em afirmar o nosso Alvarinho no mundo contra a força do Albariño espanhol”.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários