Violência "prêt-à-porter"

Chocamo-nos mais com a história do cão que é abatido por eventual contágio de ébola do que com os massacres na Nigéria e os genocídios na Síria e no Iraque

Foto
Thaier al-Sudani/Reuters

Quanto mais olhamos, menos vemos. Quanto mais irreais e impossíveis nos parecem as imagens, menos acreditamos nelas, menos elas nos perturbam. Tornamo-nos aos poucos resistentes, insensíveis, indiferentes. É como um veneno que se toma em microdoses diárias até o nosso corpo saber viver com ele e o conseguir aceitar em tomas cada vez maiores.

Lembro-me bem da minha infância. Dos cuidados que os "pivots" de televisão tinham com imagens chocantes, da atenção que os pais tinham com o que víamos. Foi mais tarde, com os videojogos, que a violência ficou mais perto, mais disponível. No final dos anos 90, a Internet passou a tê-la para quem quisesse espreitar. Hoje, recebemo-la do Facebook em pacotes diários, sem qualquer aviso ou preocupação.

Não falo apenas do Estado Islâmico e das imagens de profundo terror a que vamos assistindo. Falo dos vídeos com animais, com jovens perturbados, com abusos sexuais, da violência amplamente generalizada. Temos no bolso uma janela para o mundo, que nos mostra e amplifica o pior que o mundo tem. E mostra esse mundo a todos. Aos mais velhos e aos mais novos. Aos que distinguem e enquadram o que veem. Aos que assimilam e se formam com o que têm.

Preparamo-nos para o terror. Chocamo-nos mais com a história do cão que é abatido por eventual contágio de ébola do que com os massacres na Nigéria e os genocídios na Síria e no Iraque. Enquadramos o valor da vida numa estranha grelha em que um europeu valerá 100 asiáticos e uns 300 africanos. Em que a morte de quem está longe não é passível de nos perturbar, a não ser que venha acompanhada de um qualquer facto que nos emocione, um clamor, uma lágrima em estilo cinematográfico.

Somos hoje capazes das maiores manifestações de força e de coragem. Gritamos por Charlie. Pedimos justiça. Não mostramos medo. Mas desenvolvemos com o polegar direito a eficaz aptidão de nos tirar da vista, em microssegundos, tudo aquilo que não queremos ver e não queremos ter que resolver. Sequer pensar. É esse o dedo que nos “protege”. O mesmo dedo que por inércia torna os nossos filhos mais vulneráveis.

O caminho será talvez irreversível. Aguentamos em crescendo as imagens do horror. E mais de 70 anos depois do holocausto, percebemos melhor como foi possível o mundo ter vivido o que viveu. Abrimos o Facebook. Está tudo lá. Este é também o ADN deste lugar. Violento, sanguinário, vingativo, assustador. Agora muito mais perto de cada um de nós, tingindo a vida de pixels vermelho-sangue. Cada vez mais denso. Cada vez mais perto.

Enfim, não penses mais nisso... Afasta com o polegar e joga Candy Crush.

Sugerir correcção
Comentar