Atiramos tijolos, mas a vida continua

Wim Vandekeybus tem esta necessidade de se meter com gente que não é da idade dele desde que se tornou demasiado crescido para perder tempo com coisas sérias, tipo a dança contemporânea. Talk to the Demon, que hoje chega ao Theatro Circo, é a peça em que se deixa dominar por um miúdo de sete anos. Falámos com o demónio.

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No centro de Talk to the Demon está uma criança: é ela "o arquitecto de todo o serão", controlando os outros seis bailarinos a partir das suas possessões, dos seus caprichos, dos seus jogos mentais DANNY WILLEMS
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Wim Vandekeybus está mais interessado em trabalhar com crianças e adolescentes do que em formar bailarinos para a dança contemporânea DANNY WILLEMS
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Talk to the Demon apareceu para preencher um buraco na agenda de Wim Vandekeybus quando o filme que estava a rodar entre a Hungria e a Roménia foi cancelado por dificuldades financeiras DANNY WILLEMS
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Desde que aterrou na dança belga com o seminal What the body does not remember, em 1987, Wim Vandekeybus não parou de atirar pedras e tijolos contra a parede – e ainda está vivo, sublinha DANNY WILLEMS
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“Gosto muito de trabalhar com o perigo. Se ele não estiver lá, não é interessante para quem está a ver", argumenta o coreógrafo belga DANNY WILLEMS
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Um palhaço, um demónio, uma multidão: Talk to the Demon joga-se entre estes três vértices DANNY WILLEMS
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Um palhaço, um demónio, uma multidão: Talk to the Demon joga-se entre estes três vértices DANNY WILLEMS
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Um palhaço, um demónio, uma multidão: Talk to the Demon joga-se entre estes três vértices DANNY WILLEMS

Wim Vandekeybus cresceu com demónios que o fazem atirar tijolos e pedras a paredes de metal, e isto há 27 anos. Foi a milhares de quilómetros, mas até aqui se ouviu o estrondo que faziam os rapazes Vandekeybus a desabar contra o chão, na língua estranha e suicida que falam as peças do coreógrafo flamengo desde What the body does not remember, o muito afirmativo big bang com que refundou em 1987, a partir dos escombros em que a tinha deixado, a nova dança belga.

O corpo dele lembra-se – demasiado, diz-nos neste princípio de tarde em que atende o telemóvel para responder às perguntas que temos sobre o Talk to the Demon, espectáculo que hoje traz ao Theatro Circo, em Braga, para abrir o ciclo A dança dança-se com os pés e o programa de comemorações do centenário da sala, que se festejará todo o ano mas sobretudo em Abril. “Claro que o meu corpo se lembra. Por exemplo: passei oito anos a escrever o meu último filme [Galloping Mind está em pós-produção e deve estrear-se ainda em 2015] e seria capaz de representar os papéis todos como acho que deviam ser feitos. Mas há uma altura em que tenho de me afastar e deixar que os actores levem as personagens para lugares que eu não tinha previsto (a Hungria, por exemplo: foi lá que filmou com dezenas de miúdos de rua, dezenas de miúdos ciganos que passaram por ele a cavalo]. Sou só o realizador, não posso controlar tudo”, explica. Bom, o corpo dele lembra-se até de coisas mais antigas: da maneira como ficou em carne viva depois de tantos tijolos lhe caírem em cima, porque aquilo era a dança a ser mortal (“E no entanto a vida continuou, eu ainda estou aqui”), e da maneira como, muitos anos antes (cresceu no campo: o pai foi veterinário), intuiu toda uma linguagem a partir do instinto – e da confiança sobre-humana que os animais têm no corpo.

Houve outras coisas que o fizeram crescer. A música, em que também sempre mostrou uma confiança sobre-humana ao ponto de encostar a ela diversas peças da sua Ultima Vez – do David Byrne de In Spite of Wishing and Wanting, em 1999, ao David Eugene Edwards de Blush, em 2003, passando pelo Marc Ribot de Inasmuch as Life is Borrowed…, em 2000. Deixou-a para trás, e o silêncio caiu-lhe em cima. “Talk to the Demon é uma peça sem música – e, nesse sentido, é uma peça muito assustadora e muito nua, mas ao mesmo tempo também muito pura e muito comovente. A música enche tudo. Com música parece tudo muito bonito; tiras a música e vês as coisas como realmente são.”

Talk to the Demon é assim: sem música, mas não propriamente muda (os corpos dos bailarinos estão amplificados, todo o palco é uma banda sonora) nem sem palavras, porque começa logo com uma pergunta (não tão difícil de digerir como a que fazia há mais de dez anos no fim de Blush: “E tu, engoles?”). Entre os dois miúdos que aparecem no palco, há um que teremos de escolher, e certamente escolheremos “o miúdo errado, o mais merdoso”, como nos faz engolir, em seco, Jerry Killick, um dos pais que o coreógrafo pôs em palco, como se ainda acreditasse que seria possível domar a energia primitiva, demoníaca, que é libertada assim que a peça começa (Sarah, que durante os primeiros meses foi a miúda preterida de Talk to the Demon, é filha do intérprete-fetiche de Vandekeybus, o seu Klaus Kinski, mas “faltou a demasiadas aulas” e foi substituída entretanto: “No mundo do espectáculo, nunca se deve trabalhar com crianças nem com animais, e o miúdo que vocês escolheram é ambos”, diz ainda Killick antes de o circo ter verdadeiramente lugar, chicotes e tudo).

 

Trabalhar com o perigo

Já não estamos – passaram uns anos – no recreio de Radical Wrong, onde em tempos Vandekeybus encenou uma adolescência daquelas de caixão à cova com tendas de campismo, roupa interior, motas, cerveja, bebedeiras, bullying, euforia, palavrões, sexo forçado e sexo consentido, para provar que “não há certo nem errado numa cabeça com 16 anos, só na cabeça dos pais”. Tem saudades disso: “É a última idade em que ainda não pensas em morrer. A força disso é uma coisa que aos 25 anos já esmoreceu e que aos 35 desapareceu completamente”, dizia então ao Ípsilon. Passaram uns anos, escrevíamos, e ele andou para trás. Passou a trabalhar mais com crianças e com adolescentes – não tem vontade nenhuma de formar bailarinos para a dança contemporânea, prefere abrir as portas do grande estúdio que entretanto encontrou num bairro de imigrantes de Bruxelas, cheio de entulho pós-industrial, e absorver a fúria de quem ainda tem tudo para aprender – e viciou-se nisso. “Ao fim de tanto tempo é difícil começar do zero. Mas trabalhar com pessoas novas ajuda. Não posso confiar que saibam do que eu estou a falar, e isso obriga-me a explicar tudo outra vez. Em Março, vou fazer outro espectáculo, e quero mesmo que seja uma coisa nova, mais lírica. Para me sentir vivo preciso de saber que ainda sou capaz de montar um espectáculo inesperado. É uma tarefa interminável, atroz, nunca se fará depressa.”

No caso de Talk to the Demon, trata-se mais de saber se ainda é capaz de desencadear, não de fazer, um espectáculo interessante. O espectáculo que Vandekeybus traz a Braga nasceu da gigantesca frustração de ter tido de desperdiçar o material que tinha andado a descobrir entre a Hungria e a Roménia, com os tais miúdos de rua não tão diferentes assim daqueles que lhe aparecem à porta em Sint-Jans-Molenbeek. “Passei o último ano ocupado a filmar mas de repente o projecto foi cancelado por dificuldades financeiras, e dei por mim com imenso tempo livre. Como vinha de trabalhar com 45 crianças, achei que devia usar essa energia para criar uma peça sobre a violência e a crueldade da infância. Basicamente, a ideia era encontrar um miúdo que fosse o arquitecto de todo o serão, e deixá-lo controlar os outros seis bailarinos a partir das suas possessões, das suas crueldades, dos seus caprichos, dos seus jogos mentais.”

Muitos dos miúdos que via passar à porta do estúdio em Sint-Jans-Molenbeek entraram e foi com eles que Vandekeybus começou a levantar Talk to the Demon: “A companhia instalou-se ali há dois anos e meio e fomo-nos conhecendo pouco a pouco. Fiz vários workshops com cerca de 15 miúdos – sessões de trabalho muito abertas, em que não lhes disse que estávamos a trabalhar numa nova produção, e que me permitiram aprofundar imenso as ideias, através das tarefas que vamos executando e que claramente distinguem quais são os melhores. Foi um casting orgânico, um processo que se foi afunilando.” Aprendeu muito: que há crianças de oito anos demasiado adultas, quase velhas, e que a combinação de que precisava (fiabilidade, frescura, vontade) não se encontra com muita facilidade. “Gosto muito de trabalhar com o perigo. Se ele não estiver lá, não é interessante para quem está a ver. Claro que quando existe esse optimismo, essa euforia, essa extroversão, é fácil perder o controlo. Quando deixas os miúdos sozinhos em cima de um palco e não lhes dás nenhuma instrução, eles podem ser terrivelmente desinteressantes. Ou terrivelmente selvagens. Mas somos duros com eles: estão num espectáculo e têm de se defender. A verdade é que andamos há anos a atirar tijolos e a vida continua.”

Aqui, além de tijolos, há pedras atiradas em fúria contra a parede de metal. Adultos em roupa interior, dispostos a matarem-se pelo último chocolate. Corpos presos por elásticos e ganchos, gritos, manadas de cavalos tiranizados por apenas um cowboy do alto de nove anos, triciclos e raquetes de badmington. Um miúdo escolhido, outro sacrificado. E perguntas difíceis, vindas do sítio onde a inocência ainda é selvagem (“Amas-me?”, “Quando é que eu vou morrer?”, “Porque é que não há música?”). Como espectadores, maniacamente levados ao limite por um coreógrafo tão diabólico quanto curandeiro, podemos escolher entre a inércia e a cumplicidade, e teremos de aceitar que isso será suficiente. “Há essa altura em que o miúdo pergunta ‘porque é que não há música?’ e em que somos obrigados a parar para o ouvir – porque eu queria ouvir os miúdos, e os miúdos sabem imenso de música. Aqui parece não haver música – nem ideias, nem intenção – e no entanto o espectáculo está cheio disso tudo.”

De tudo aquilo que tínhamos jurado, querido, nunca fazer em frente às crianças.

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