Angola, um país com História a mais

Daniel Metcalfe nunca tinha ouvido falar português. Um dia ouviu cantar Ana Moura e apaixonou-se pela língua. Depois descobriu Angola e escreveu um livro.

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DANIEL ROCHA

Em 2008, o jornalista inglês Daniel Metcalfe ouviu na rádio uma canção de Ana Moura. Mais do que pela música, ficou fascinado pelos sons daquela língua estranha que nunca antes ouvira. Começou então a estudar português e a frequentar uma biblioteca londrina na Belgrave Square, em Londres, a Hispanic and Luso-Brazilian Council Library, onde se podiam encontrar livros raros relacionados com a História de Portugal e das suas colónias. “Infelizmente essa biblioteca já não existe”, contou ao Ípsilon, “era um lugar à moda antiga e sobrevivia graças a subsídios”.

Foi nessa biblioteca que conheceu Rui, um jornalista angolano a viver entre Luanda e Londres, antigo “tradutor dos senhores da guerra no mato”, opositor e crítico feroz do partido que governa Angola desde a independência, o MPLA. Rui contava histórias sobre os “manda-chuvas da comunicação social, os trapaceiros e os magnatas do petróleo que estavam a sugar as riquezas nacionais e a transferi-las para as suas contas bancárias”. Entre as várias histórias contadas, havia a daquele empresário angolano que tinha em casa “uma estátua que urina champanhe”, ou a de outro que andava sempre com “um chefe pasteleiro português baixinho a correr atrás dele”. Daniel Metcalfe poucas vezes ouvira falar em Angola, e a curiosidade fê-lo perceber que é um país com uma história difícil e complexa. E quis estudá-la a fundo. “Angola tem, provavelmente, mais história do que aquela a que um país tem direito.”

A biblioteca londrina era uma espécie de refúgio espiritual para um estranho grupo de “intelectuais anacrónicos, antigos activistas chilenos, um poeta goês que se orgulhava de falar um português erudito e uma misteriosa herdeira colombiana”. O seu espólio parecia ter estagnado na década de 1970, na altura em que os movimentos de libertação das antigas colónias lusófonas viram chegar a esperada independência. Daniel Metcalfe passou então alguns meses a percorrer esse acervo bibliográfico e a ler tudo o que lhe pudesse interessar para uma visita ao país, sensibilizando-o para os vestígios que iria encontrar, do império marítimo português aos contornos da Guerra Fria em África, passando pelo comércio de escravos, e sentindo-se “cada vez mais fascinado por aquele longínquo país, um dos mais singulares e envolventes que é possível visitar”. 

Angola simbolizava um importante ponto de viragem entre os continentes, o reposicionamento do mundo dos ricos em relação a África, aquilo a que alguns já chamam “neocolonialismo em sentido inverso”. “A minha faceta de viajante queria conhecer este lugar, que vivia um intenso crescimento, para ver com os meus próprios olhos os tais chefes pasteleiros portugueses a passarem pelos bairros de lata a caminho do trabalho”, diz Metcalfe em tom jocoso. Anos antes, o jornalista financeiro inglês publicara um livro de viagens sobre a Ásia Central, Out of Steppe. Agora tinha um novo projecto para outro livro de viagens: Dália Azul, Ouro Negro – Viagem a Angola. Mas Luanda é a capital mais cara do mundo e o orçamento de Daniel Metcalfe não era abonado. Conhecera entretanto em Londres vários angolanos, e entre eles um que lhe disse que a sua família teria todo o gosto em recebê-lo e acomodá-lo em casa em Luanda. Metcalfe estava decidido a tentar perceber “que tipo de sociedade vende hambúrgueres a 30 libras e cobra 300 libras por noite num quarto de hotel pavoroso. A situação é tão extrema que se torna quase risível. Enfim, um irresistível desafio.” Mas ao mesmo tempo queria mostrar que não era preciso fretar um helicóptero ou alugar um jipe para visitar lugares no interior do país. Assim, viajaria como o comum dos angolanos, ao contrário de muitos estrangeiros que encontrou (incluindo bastantes portugueses) que não querem viajar para fora do lugar onde trabalham por temerem os perigos. “Recusava-me a ser um desses comerciantes-viajantes rabugentos que se queixam de pagar seis dólares por uma Coca-Cola no vestíbulo de um hotel.”

 

As viagens

Daniel Metcalfe viajou duas vezes para Angola, em 2010 e em 2012, demorando-se no país um total de três meses. Na primeira viagem fez uma paragem de alguns dias em São Tomé e Príncipe (estada descrita nos dois primeiros capítulos do livro Dália Azul, Ouro Negro) para se aclimatar aos efeitos do colonialismo português e ao seu legado. Depois, já em Luanda, aproveitou a hospitalidade da casa do amigo para lhe servir de base, e usou os transportes públicos entre localidades, nas viagens mais longas (quando não existiam ligações, recorreu a ONG inglesas). Fez quatro rotas: de Luanda a Saurimo (capital dos diamantes), passando por Malanje, no Leste do país; de Luanda ao Cuíto Canavale (a cidade da célebre batalha entre forças cubanas e sul-africanas), passando por Benguela, Lobito, Huambo e Menongue; de Luanda a M’Banza-Congo, já perto da fronteira Norte; e uma última ao enclave de Cabinda, a região petrolífera de Angola.

Metcalfe registou as inúmeras conversas que teve com as mais variadas pessoas (líderes tribais, trabalhadores da indústria petrolífera, rapazes da rua), e também com alguns portugueses. “Parece haver uma aparente relação de amizade entre portugueses e angolanos, mas por vezes é complicada, quase ambivalente. Partilham uma língua e um passado. Estranhamente, muitos angolanos não falam nenhuma língua africana – circunstância única em toda a África subsariana, penso, desdenhando o quimbundo a favor do idioma oficial. Há, claro, aqueles saudosistas do império, e muita nostalgia entre os mais velhos. Mas aos mais novos apenas interessa o trabalho, são pragmáticos. E à semelhança dos ingleses, por exemplo, também me pareceu que os seus círculos sociais se restringem sobretudo aos do seu país.”

Dália Azul, Ouro Negro – Viagem a Angola, o livro de histórias de um viajante optimista, prova a ideia com que Metcalfe iniciou a viagem, a de que “existia ali algo de invulgar e único e que ainda era possível testemunhar cenas inspiradoras e ser obsequiado com gestos de amabilidade espontâneos”, apesar de toda a frustração do povo que habita os musseques que cercam a Luanda cosmopolita. É um livro que depois de lido não se esquece tão depressa.

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