A família ou o suicídio

Desesperado, sem dinheiro, Teddy Thompson, filho de Richard e Linda Thompson, teve a mais bizarra das ideias: fazer um disco com todos os compositores da família. Não era para ser, mas tornou-se um álbum sobre a importância do clã – e também a catarse do violentíssimo período em que os pais se separaram.

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Linda Peters e Richard Thompson foram um caso especialíssimo do folk-rock britânico: casaram-se em 1973
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O casal Thompson foi de insucesso em insucesso até que um álbum, Shoot Out The Lights, fez deles estrelas da noite para o dia

E de repente todo o corpo se arrepia, os pêlos eriçam-se, a garganta aperta. Estamos no refrão de Bonny boys, o quarto tema de Family, pérola folk editada há pouco por um grupo chamado Thompson – isto é, Richard e Linda Thompson, mas também os filhos, sobrinhos e netos de ambos. Até aí fora Linda a guiar a canção, que é uma espécie de aviso de uma mãe aos filhos acerca dos perigos do mundo (costuma tratá-los por "Bonny boys", daí o título.) Quando chega o refrão, Richard junta-se à ex-mulher e ambos cantam às suas crias Bound to no-one, fear nothing (…)/ Dry your tears/ I am at peace/ With your sweet voices in my ears”. Todo o corpo se arrepia.

É que há 40 anos, em End of the rainbow, nono tema de I Want To See The Bright Lights Tonight, o primeiro disco lançado a meias pelo par, Richard Thompson, ex-fundador dos Fairport Convention e inventor do folk-rock britânico, cantava, com uma rispidez psicótica "I feel for you, you little horror/ Safe at your mother's breast (…)/ 'Cause your father is a bully/ And he thinks that you're a pest/ And your sister she's no better than a whore”. Muna, a filha mais velha do casal, tinha acabado de nascer.

Oito anos depois chegava Shoot Out The Lights, que viria a ser o último disco a meias de um casal que pouco depois não o era mais. Linda estava grávida de Kami, a terceira filha, e as letras de Richard descreviam, com uma exactidão cruel, a violência emocional da separação.

Entre as duas obras-primas, entre Muna e Kami, nasceu Teddy. Que, ficámos a saber há dias, quando falámos com ele, é quem realmente canta a harmonia de Bonny boys – numa imitação perfeita da voz do seu pai anos antes. Teddy, que leva uma bela carreira em nome próprio, foi o mentor de Family. Foi dele a ideia de todos os elementos da família que se dedicam à música criarem um álbum em conjunto; e foi dele a ideia de cada um gravar em separado, de modo a não houvesse lugar a atritos. As boas intenções, no entanto, têm um limite – e não tenhais dúvidas de que quando se houve a voz de Teddy em Bonny boys no lugar do que devia ser a voz de Richard, alguém está, finalmente, a matar o pai.

Tudo começou, como não podia deixar de ser, com desespero. “Quero deixar isto bem claro: a Verve [editora que lhe lançava os discos] não renovou o meu contrato. Admito que me foi difícil ajustar-me à vida sem uma editora que me carregasse. Não sou propriamente um empreendedor”, confessa Teddy. 

O dinheiro não era o único problema de Teddy na altura. Ou por outra: “mais tarde”, ele apercebeu-se de que o dinheiro não era o único problema, visto que na altura em que teve a ideia de juntar os pais, uma irmã directa, uma meia irmã do segundo casamento da mãe e um sobrinho para juntos criarem um álbum, ele estava “apenas à procura de editar qualquer coisa enquanto não decidia o que o próximo disco ia ser”.

Mas, “olhando para trás”, admite Teddy, “este disco coincidiu com um período muito difícil". "Comecei a colocar muitas questões, a mim e ao meu terapeuta, sobre a minha infância e sobre como cheguei a este ponto na minha vida. E devagarinho fui-me apercebendo de que manifestei o desejo de fazer este disco como forma inconsciente de juntar a minha família e reparar alguns dos danos feitos quanto eu tinha seis anos." 

Linda Peters conheceu o seu futuro marido nas gravações de Henry The Human Fly, disco a solo de Richard que tem a honra de ser o álbum menos vendido em toda a história da Warner Bros Records. Por maiores que os Fairport Convention nos pareçam hoje, a verdade é que sempre que o seu fundador se dedicava a álbuns a solo as vendas eram um desastre.

Em 1973, o casal casou-se e colaborou em cinco discos, todos com o mesmo inêxito, até que Shoot Out The Lights os tornou, da noite para o dia, estrelas. Teddy Thompson tinha seis anos. Nascera no seio de uma comunidade islâmica em que os pais decidiram assentar, por entre dietas que faziam toda a família passar fome e que – dizem as más línguas – estarão na origem de episódios de tremenda violência emocional por parte de Richard. Naquele exacto instante em que tudo poderia ter sido perfeito, com os cheques a caírem na conta bancária, já o mal estava feito – Richard saiu de casa e Teddy não voltou a ver o pai até aos 18 anos, quando se borrifou para a universidade e foi viver com o pai para se tornar cantautor. Não admira que tenha contas a ajustar com os seus seis anos de idade.

Mas na génese do projecto que agora chega às lojas não estava qualquer vingança – nem sequer era suposto que o tema fosse a família, como veio a ser. “Pedi a cada membro da família que escrevesse canções originais para este disco, mas não especifiquei tema algum. Nesse sentido foi interessante ver a resposta que deram – algumas canções eram claramente sobre a família e o amor, outras mais pragmáticas."

Teddy refere-se ao pai que, evasivo como sempre, aproveitou para escrever um tremendo hino político sobre os nossos tempos, That's enough. Mas em One life at a time, a segunda canção com que contribui para Family, canta a dada altura “Sometimes it's hard to say/ what you got to say anyway/ I'm gonna have to say/ that I'm not thrilled about you (…)/ You're building me a prison/ where freedom is a crime”. Para o melómano atento à vida privada deste homem, isto é o típico e velho Richard: sarcástico, bruto, vagamente misantropo mas honesto e certeiro até à medula.

Bem”, começa Teddy, “o meu pai jura que é uma canção política, mas sem dúvida que eu ouço na canção o mesmo que tu”. Uma espécie de confissão: seja qual for a relação que se tem com uma pessoa, vai sempre haver momentos em que não a suportamos. “Seja o que for que ele esteja a dizer, adoro a ideia: afasta-te da minha vida, vive a tua. Acho que funciona em muitos aspectos." 

 

Curar a ferida

Family foi gravado de uma forma particular: todos os membros da família mandaram as canções por e-mail, e Teddy tinha a última palavra quanto ao que ficava. Só se encontrou com o pai, mas não correu propriamente bem: Teddy tinha “dificuldade em dizer-lhe 'Toca menos', em dar-lhe ordens”. Era importante que eu fosse o produtor e tomasse decisões, porque alguém tinha de estar ao comando. E o e-mail era a única forma possível: juntar esta gente toda ficava demasiado caro, porque vivemos em sítios diferentes – além de provavelmente não ser boa ideia juntar os meus pais no mesmo espaço”, diz, com uma sinceridade desarmante. 

Teddy parece ser, muitas vezes, o rapaz “not too secure of himself”, como se descreve na canção que dá o título ao álbum. Tem uma necessidade de honestidade tão grande que é capaz de dizer: “Pessoalmente, apreciei o processo porque o controlei. E quando os meus pais se separaram, o que eu mais senti foi que não tinha controlo algum, não fui tido nem achado no curso dos acontecimentos. Isto ajudou a curar um pouco a ferida." 

A família, note-se, não levantou nenhuma objecção ao projecto: “Tinha a certeza de que iam dizer sim. Eles sabiam que eu precisava”, diz Teddy – uma resposta que nos faz pensar que, “por mais disfuncionais” que sejam, ainda há ali algo que os agarra uns aos outros. Mas uma coisa é ter empatia pelo filho/mano/tio que anda mal da carteira. Outra é brilhar menos do que ele – e desde o primeiro momento Teddy apercebeu-se de que “havia uma certa competição”, que ele considera “saudável”. (Ao New York Times, Kami disse que tinha de fazer a melhor canção de todas, desse por onde desse.) Teddy “nunca [teve] dúvidas de que os seus familiares escreveriam boas canções”. De facto, a qualidade era de tal monta que “após escutar o que toda a gente fizera” Teddy sentiu “uma enorme pressão” enquanto escrevia a sua segunda canção. Acabou por ser a que abre o disco e lhe é homónima.

É um tremendo pedaço de composição, uma balada folk num ¾ que traz inquietude às palavras – de uma mesura e de uma empatia humanas admiráveis: “My father is one of the greats/ to ever step on a stage/ my mother has the most beautifull voice in the world/ and I am betwixed and between/ Sean Lennon, you know what I mean/ (…). It's family (…)/ My mother gave me all of the love that she had/ she lived for us kids (…)/ but she never dealt with her pain/ and I've done exactly the same”, canta Teddy. Um portento de canção, uma abertura perfeita que desde logo sumariza o que se segue. Há uma razão para isto.

Vou contar-te uma coisa”, começa Teddy, sempre no seu tom de quem é incapaz de não ser honesto: “Essa foi a última canção escrita para o disco. Não conseguia compor nada de jeito e procrastinei o mais que pude – e hoje estou feliz por tê-lo feito. Acho que estava escrito que tinha de ser assim. É que doutro modo não poderia ter composto o que no fundo é uma espécie de síntese do projecto e da ideia de família em geral. Estou muito orgulhoso dessa canção”.

Continua, no seu jeito de miúdo que finalmente se impôs mas ainda luta para ser ouvido: “Apesar de a minha família não ser tradicional, porque os meus pais são músicos, ainda assim somos uma família – e temos os mesmos problemas que as outras famílias. Também temos uma dinâmica musical que torna as coisas ainda mais confusas, competitivas e por vezes excitantes – acho eu. Falamos mais uns com os outros através de canção do que cara-a-cara." 

Quando Family começou, Teddy estava a sentir-se “muito só e mal amado”. Ocorreu-lhe fazer um disco a solo sobre a família mas rapidamente percebeu que se tivesse feito tudo sozinho se teria suicidado. Depois diz isto: “Precisava que a minha família se unisse em torno de mim." 

Precisamos todos, Bonny boy. E é exactamente por tu e os teus terem sabido transmitir isso tão bem que Family é possivelmente o mais belo e comovente disco de final de 2014 e ficará connosco muito tempo.

Que os vossos estejam sempre ao vosso lado.<_o3a_p>

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