Médicos rejeitam alargamento “inútil e prejudicial” das funções dos enfermeiros

Ordem dá parecer negativo a proposta do Ministério da Saúde para ultrapassar dificuldade de resposta nas urgências dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde.

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Para José Manuel Silva a solução está no reforço directo dos recursos humanos Sérgio Azenha

A proposta do Ministério da Saúde de alargar as funções dos enfermeiros nas urgências dos hospitais públicos, para colmatar as horas de espera sentidas nas últimas semanas, é considerada “demagógica, inútil e prejudicial” pela Ordem dos Médicos, que rejeita por isso a solução. No parecer negativo, assinado pelo bastonário José Manuel Silva, é argumentado que os doentes urgentes “não são meros protocolos” e que a requisição de exames por profissionais de enfermagem representaria apenas uma “falsa solução”.

Em síntese, o bastonário resume que a proposta da tutela “mistura e baralha conceitos, irá aumentar a despesa em exames complementares, vai atrasar a aplicação da triagem dos doentes e vai obrigar os doentes a serem submetidos a exames complementares em dois tempos, nada beneficiando de forma substantiva o processo de avaliação e encaminhamento do doente no serviço de urgência”, reiterando que “a única forma de acelerar a observação dos doentes num serviço de urgência é dotando os serviços de urgência dos recursos técnicos e humanos que necessitam, nomeadamente médicos”.

A posição de José Manuel Silva já tinha sido avançada ao PÚBLICO aquando do anúncio da proposta do Ministério da Saúde. Na altura, o bastonário, ainda sem avançar as conclusões do parecer final, já alertava que tinha “sérias reservas” sobre a sua eficácia. “Querem pedir análises e RX para todos os doentes que entram na urgência? Peçam. Mas isso terá custos, alguém vai ter de pagar, e não resolve o problema do doente. Só serve para lhe dar a sensação de que fez alguma coisa enquanto espera horas. É um remendo. O essencial para resolver os problemas das urgências é que o doente seja visto por um médico atempadamente, nos tempos definidos”, dizia.

Agora, no parecer sobre a proposta de despacho que o ministério de Paulo Macedo fez chegar à Ordem dos Médicos, começa por considerar “particularmente grave” a ideia de que os enfermeiros venham a poder “implementar protocolos de analgesia”, isto é, controlar as dores dos doentes que chegam às urgências, antes de serem vistos pelos médicos. “Fazer analgesia antes de observação clínica representa um enorme risco para os doentes, podendo mascarar algumas situações potencialmente graves”, explica José Manuel Silva.

A Ordem dos Médicos defende que a Triagem de Manchester, em que os enfermeiros classificam os doentes que chegam aos hospitais de acordo com a urgência dos casos, atribuindo uma pulseira com a cor correspondente (vermelha, laranja, amarela, verde e azul), consiste em aplicar um protocolo elaborado por médicos e que resulta de algoritmos.

Uma forma de trabalhar que consideram que não se pode estender ao pedido de exames complementares de diagnóstico. “É que o pedido de realização de exames complementares de diagnóstico no contexto geral da Triagem de Manchester deverá ser enformado por uma presunção clínica de diagnóstico até porque, estando em causa exames que importam a ofensa à integridade física do doente e que, em alguns casos, importam riscos para essa integridade, os mesmos só devem ser prescritos/utilizados na medida do estritamente necessário e em face de uma hipótese científica e clinicamente fundamentada de diagnóstico”, lê-se no parecer, que questiona ainda se os doentes vão pagar taxas moderadoras destes exames que podem ser desnecessários e qual o impacto na factura do Serviço Nacional de Saúde.

“Aparência de que o utente está a ser atendido”
Para os clínicos, o verdadeiro problema das urgências continua a ser a falta de profissionais e de meios, referindo ainda casos de “classificação errada de alguns doentes, com sérios prejuízos para os mesmos”. Por isso, insistem que os pedidos de exames por parte dos enfermeiros poderão atrasar o trabalho dos próprios profissionais de enfermagem nas triagens, sem resolver o diagnóstico. O parecer afirma que se estará perante uma “aparência de que o utente está a ser atendido e a aceder aos cuidados de saúde, quando a observação por um médico continuará a depender dos recursos médicos existentes”. “Verdadeiramente, o que adianta ao doente fazer alguns exames se, durante horas, nenhum médico puder observar o doente e analisar esses exames?”, questiona o bastonário.

A Ordem argumenta que a medicina não pode ser “normalizada” e que, “na esmagadora maioria dos doentes, o que vai acontecer é que, quando por fim tiverem a sorte de chegar a sua vez de serem sujeitos a observação médica, caso não seja já tarde demais, o doente vai ter de repetir a realização de exames complementares, agora adequados aos diagnósticos diferenciais finalmente colocados na sequência da realização da competente história clínica”.

Como medidas, o parecer propõe o reforço dos cuidados de saúde primários, para que os centros de saúde consigam responder a “situações clínicas agudas que sobrecarregam” as urgências, e o reforço de camas hospitalares para descongestionar as das urgências e não esgotar macas, descrevendo uma visita a um hospital em que José Manuel Silva encontrou 52 macas em salas para 17. Apela-se, ainda, a auditorias externas ao funcionamento dos serviços.

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