Miguel Bonneville tem Simone de Beauvoir no corpo

Com A Importância de Ser Simone de Beauvoir, em estreia no Negócio (Lisboa), Miguel Bonneville continua uma série em que se descobre na obra de outros autores.

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Em Março de 2012, Miguel Bonneville encenou a sua morte e o seu próprio funeral no Porto. No final de uma série autobiográfica, Bonneville matava a sua identidade artística para poder recomeçar sem estar preso ao passado. Já tinha sugado tudo quanto conseguira à vida para alimentar a arte e então, aos poucos, começou a tratar da ressurreição.

Com esse regresso à vida surgiu uma outra série, A Importância de Ser…, estreada em Dezembro de 2013, no Centro Cultural de Belém. Esse primeiro momento foi, na altura, dedicado ao peculiar autor do Cinema Novo português António de Macedo. Agora, entre 14 e 17 de Janeiro, segue-se no Negócio – Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, A Importância de Ser Simone de Beauvoir.

Não adoptando um tom de homenagem, Miguel Bonneville passa a visitar com esta série a obra de autores fundamentais no seu percurso artístico – depois de Beauvoir será, provavelmente, a vez de Agustina Bessa-Luís –, tentando encontrar forma de estabelecer um diálogo. No caso de Simone de Beauvoir, cativado pelas temáticas comuns – a sexualidade, as questões de género, o feminismo, o existencialismo, o recurso à autobiografia, a proximidade com a morte – e esmagado pelo peso do texto da autora francesa que descobriu ao ler A Convidada, Bonneville começou por decidir eliminar a palavra da equação “para não ser uma coisa muito directa”. “Seria mais fácil ir buscar a palavra escrita, mas preferi pensar que o corpo pode ter essa função”, argumenta. E partiu, assim, de uma pergunta a que tenta responder durante todo o espectáculo: “Como pode o corpo fazer uma espécie de escrita em cena?”

Essa escrita, diante de uma tela branca que se torna o foco do seu constante vaivém, trocando de roupas e parecendo assumir várias personagens, funciona, no fundo, como afirmação de uma identidade em transformação contínua. “O meu trabalho”, refere Bonneville, “é sobre a construção e a desconstrução da identidade. Nesse sentido de estar sempre a mudar porque nós estamos sempre a mudar e as circunstâncias fazem com que repensemos a forma como agimos, como achamos que somos.” A ideia de trocar repetidamente de roupa implica, por isso, uma constante adaptação de quem é – ao espelho, diante de si mesmo, mas também perante o olhar exterior de cada um. Essa ferramenta dramatúrgica foi inspirada por uma filmagem da fotógrafa Cindy Sherman, exemplar exploradora da ideia da representação do feminino.

A recusa
Esse vaivém permanente de Miguel Bonneville entre o espelho e a tela – depois de uma introdução em que joga com uma propositada ambiguidade do corpo nu, em que o género se esconde numa penumbra sobrevoada pela trompete inquieta de Susana Santos Silva – joga, em paralelo, num outro tabuleiro. A Importância de Ser Simone de Beauvoir alimenta-se ao mesmo tempo de um paradoxo: apresenta-se como um ensaio, um espectáculo também em construção, que tenta escapar à inevitabilidade de ter uma forma final. Sintoma de uma natureza artística que se tem definido pela recusa: “Todo o meu percurso se tem feito pela negação. Acho que é a minha maneira natural de chegar às obras, percebendo o que não quero fazer e os caminhos que não quero tomar.”

A fuga à necessidade de categorização e definição de qualquer tipo é, de facto, um dos traços mais fortes da obra de Miguel Bonneville. O espaço para a diferença e para a individualidade é assumido como um statement sempre que sobe ao palco. “Só que ser diferente é permitido apenas dentro de um grupo de pessoas que são diferentes da mesma maneira que nós”, diz. Por isso, ao deixar-se habitar por António de Macedo ou Simone de Beauvoir, está, na verdade, a descobrir-se a si próprio.

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