O meu chefe chama-me querida

Portugal continua a ser uma sociedade machista e violenta, muito para além da violência tipificada no Código Penal.

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1. Num ou noutro sentido todos nós somos recrutas. Cerramos fileiras, escudamo-nos em palavras-bandeira, acertamos o passo pela nossa tribo e por vezes recusamos dar um passo que nos coloque em dissonância. Permitam-me ser dissonante.

Quem acompanha de fora, no meu caso da Alemanha, a polémica sobre o "piropo" que se desenrola em Portugal pergunta-se: porque que é que esta questão ainda move tantas paixões?

Comecemos pelo óbvio. Portugal continua a ser uma sociedade machista e violenta, muito para além da violência tipificada no Código Penal. Basta olhar para os crimes de violência doméstica que se vão tornando públicos para tomarmos consciência de quantas mulheres sofrem humilhações que as amarrotam por dentro. Essa violência faz-se sentir nas ruas sob a forma de assédio físico ou de "piropos" de cariz mais ou menos obsceno. Demasiadas mulheres portuguesas passaram pela perturbadora experiência de serem apalpadas ou tocadas furtivamente por estranhos, na via pública ou em transportes colectivos. Durante os anos que vivi em Lisboa também eu sofri esse tipo de abuso, mais do que uma vez, na rua, na escola, no autocarro. Por vergonha não falei deles, eram tão vulgares que mesmo entre amigas não os comentávamos, mas nunca esqueci a sensação de impotência, a humilhação e sobretudo o nojo.

2. É inquestionável que o assédio sexual fere os direitos fundamentais das mulheres, muitas delas meninas ainda, ofende a sua liberdade de ocupar o espaço público e sua integridade psíquica. Dito isto, se considero que quem abusa de uma mulher ou a força a um acto sexual deve ser julgado e punido, há algo que me incomoda na proposta de criminalização do assédio verbal, vulgo "piropo". Algo mais profundo do que a discussão tem arranhado e que se prende com as causas de perpetuação da violência e as representações do feminino.

Vamos por partes. Para mim, antes de mais, importa distinguir entre a "boca" boçal onde se faz referência ao corpo, ou a parte do corpo, da mulher - que não é mais de que uma forma exercer poder, intimidar e subjugar, e que já está tipificada na lei portuguesa, nomeadamente nas previsões penais para o crime de injúria e ofensa, tenho dúvidas que seja necessária adicional moldura penal — do inofensivo "flirt" ou galanteio. Não me venham dizer que é semântica, é muito mais do que isso.

3. O debate que se está fazer poderia ser uma excelente oportunidade para reflectir sobre os equívocos de certo feminismo português e das"abolicionistas" do piropo. Falemos do primeiro. Não há nada mais insuportável do que o paternalismo — ou deveria dizer o maternalismo? — intra-género, que diz coisas como "as mulheres estão desprotegidas". Todas as mulheres? Não se estará a menorizar as conquistas da emancipação? Precisam de ser protegidas de todos os homens? Não há homens responsáveis e conscientes dos limites a que devem submeter-se para não perturbar a esfera de individualidade dos outros?

São discursos como este, o da "desprotecção das mulheres", que contribuem para perpetuar a vitimização da mulher e ao vitimizá-la a remetem para a posição de objecto de desejo ou objecto de posse. Pior, este tipo de discurso faz de todos os homens o "inimigo" quando não é difícil de ver que muitos deles, diria a maioria, estão persuadidos da justiça da nossa(s) causa(s).

A filósofa francesa Françoise Collin fala do feminismo como "um movimento plural, sem hierarquia, dogmas, controle ou estruturas centralizadas, que não defende uma verdade, mas está em permanente processo de construção". Sublinho a noção de pluralidade e a ideia de diferença. O segundo equívoco é precisamente acreditar que todas as mulheres partilham as mesmas aspirações. Em nome de uma concepção abstrata da mulher as "abolicionistas" do "piropo" querem impor sua escolha ideológica, esquecendo-se nem todas as mulheres têm a mesma relação com seus corpos, e que a questão de aceitar ou não um "piropo" pode ser uma livre escolha. Emancipar-se é tornar-se adulto e responsabilizar-se pelas suas escolhas.

Por fim, o terceiro equívoco é crer que se pode ser feminista sendo contra o homem. Nada mais errado. Sem os envolver - e envolver não é sinónimo de criminalizar — é impossível alterar mentalidades e acabar com a violência de género.

"Devia ser o bê-à-bá da educação, a primeira coisa a ensinar-se a uma criança no jardim infantil: o amor existe. Existe e manifesta-se, antes e depois de tudo, pelo respeito. Respeito pelas ideias do outro, pelo corpo do outro, pela liberdade do outro. O corpo de uma mulher vale tanto como o corpo de um homem". Sábias palavras as de Inês Pedrosa, que se declinam em dois verbos: educar e respeitar. É neles que assenta a prevenção da violência verbal (e física) contra a mulher.

4. Vivendo na Alemanha, país onde uma mulher pode caminhar segura pelas ruas, ou ir sozinha ao cinema ou a um bar, sem recear ser assediada ou incomodada, é possível também que eu, adulta, feminista e emancipada, aceite, sem estados de alma, ser tratada afectuosamente por "querida" pelo meu chefe. Claro que não existe assimetria no tratamento, refiro-me sempre a ele como "querido", e em momento algum houve desrespeito. Tenho o privilégio de trabalhar numa empresa onde os colegas se abraçam, oferecem flores e onde um "estás muito bonita hoje" não causa ondas de comoção, nem coloca o colega mais "audaz" perante as barras de um tribunal.

Com isto quero dizer duas coisas: a primeira é que me inquieta que a "fatwa" anti-piropo possa castrar o elogio, as pequenas delicadezas que tornam a vida suportável e constituem uma dimensão essencial da relação entre os sexos, a segunda é que do alto da minha liberdade individual como mulher, não prescindo do galanteio inteligente.

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