Convicção, crença e prova

O regresso ao arcaico, no Direito, não ocorre hoje apenas em países islâmicos.

Fernando Gil estabelece a diferença entre convicção e crença. A convicção supõe uma construção cognitiva. Sendo eminentemente subjetiva, é-lhe interditada a “pretensão a uma veracidade intrínseca”. Isto é: cada qual pode ser “ludibriado pela sua própria convicção”. Mas, a convicção é, por definição, a crença no verdadeiro. Não pode ser crença no falso: isso constituiria uma contradição insanável.

A construção cognitiva é indispensável para captar, não a verdade, mas sim o que o sujeito julga verdadeiro. Portanto: a convicção é a crença no que se julga verdadeiro. Sem construção cognitiva o sujeito não seria “constrangido” a aderir a um objeto, a aceitá-lo como verdadeiro. Subjetivamente, a convicção decorre desse constrangimento.

Na crença (sem convicção) faltam a construção cognitiva e o constrangimento. A crença não reconhece ou adere a um objeto, antecipa-o. O real suposto substitui a construção cognitiva do objeto e produz um efeito subjetivo semelhante, mas sem constrangimento de aceitação. Por outras palavras: o sujeito não crê num real que julga verdadeiro; institui um real no qual crê. “A convicção é da ordem da verdade. A crença é a sede da ideologia.”

A crença alucinatória altera o estatuto da realidade ao ponto da completa inversão dos meios e dos fins. É uma perceção com objeto, mas em que este vem depois: perceciona-se primeiro, e a seguir “preenche-se” a alucinação. Um bom exemplo seria o do matemático John Forbes Nash, tal como é efabulado no filme A Beautiful Mind (“Uma mente brilhante”), de Ron Howard (EUA, 2001). Outro exemplo, muito mais antigo e conhecido de todos, é o de Dom Quixote: ataca moinhos ao percecionar gigantes.

Voltando a Fernando Gil, é ele próprio quem estabelece a conexão com os sistemas judiciários arcaicos, fundados na crença absoluta no julgador, como parte integrante de um “sistema de crenças indefectível”. Nesses sistemas, o Direito firma-se na religião. Ou então firma-se numa estrutura e num discurso de legitimação em tudo análogos aos da religião. Como nos processos de Moscovo do final da década de 30: “À maneira do direito arcaico, é julgada a pessoa e não o acto, a perigosidade potencial da pessoa e não a sua maldade real.”

Para que serve então, nessas circunstâncias, o processo judicial? Para “demonstrar um crime que se ignora, oculto por detrás da consciência do acusado”. Bastam a coesão do grupo e o fundo religioso ou ideológico para fundamentar a sentença. A “verdade” impõe-se por si só. Não carece de demonstração. Não carece de prova. Em vez da submissão à prova, privilegia-se a confissão ou a “autocrítica”: aquela enfraqueceria, estas reforçam a ordem totalitária. O show é imanente ao processo.

O regresso ao arcaico, no Direito, não ocorre hoje apenas em países islâmicos. Manifesta-se também, e mais universalmente, na transferência da soberania para os centros de poder financeiro. Os mercados tomaram o lugar do “Príncipe” ou do “Ditador”. Por um lado, ditam a suspensão do Direito ou “estado de excepção”, como compete ao poder soberano (Fernando Gil aborda largamente o conceito, inclusive discutindo a Teologia Política de Carl Schmitt). Por outro lado, promovem, como nunca antes, a disseminação do “pensamento único” numa esfera pública “refeudalizada” (Habermas).

Tais contornos totalitários deveriam ser tidos em conta na discussão do aparente regresso a uma arcaica “dispensa da prova”, na sua variante mais atual e refinada: a inversão objetiva do ónus da prova enquanto efeito automático e irreversível da gestão mediática dos processos judiciais – do caráter de show que os próprios agentes judiciários lhes conferem.

Prof. Catedrático Jubilado (FCSH-UNL)

 

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