“É difícil perceber quando a comédia humana parecerá engraçada outra vez”

Escritores e intelectuais comentam o ataque ao Charlie Hebdo pondo a tónica no ataque à liberdade de expressão.

Uderzo abandonou por momentos a reforma para criar dois cartoons de homenagem aos cartoonistas assassinados
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Uderzo abandonou por momentos a reforma para criar dois cartoons de homenagem aos cartoonistas assassinados DR
Uderzo abandonou por momentos a reforma para criar dois cartoons de homenagem aos cartoonistas assassinados
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Uderzo abandonou por momentos a reforma para criar dois cartoons de homenagem aos cartoonistas assassinados DR

Salman Rushdie, que viveu anos refém do fundamentalismo islâmico, após a edição em 1989 de Versículos Satânicos, respondeu no próprio dia, quarta-feira, ao atentado na redacção do Charlie Hebdo. “Ponho-me do lado do Charlie Hebdo, como é dever de todos, para defender a arte da sátira, que foi desde sempre uma força da liberdade contra a tirania, desonestidade e estupidez”, escreveu em comunicado.

Nos dias seguintes, outros escritores e intelectuais deram voz à sua leitura dos acontecimentos. A condenação é inequívoca, tal como a noção de se ter vivido um ataque à liberdade de expressão, pilar determinante da civilização. Escreveu-o, por exemplo, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, nobelizado em 2010: “Até agora matavam pessoas, destruíam instituições, mas o assassinato de quase toda a redacção do Charlie Hebdo significa porém algo de mais grave: o desejo de que a cultura ocidental, berço da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, renuncie a exercer esses valores, que comece a praticar a censura, a por limites à liberdade de expressão, estabelecer temas proibidos, ou seja, renunciar a um dos princípios mais fundamentais da cultura da liberdade: o direito à crítica”, escreveu no El País.

O escritor inglês Ian McEwan inicia um texto publicado no Guardian apontando na mesma direcção. “Assassino e auto-santificado, o islamismo radical tornou-se um pólo de atracção global para psicopatas. Nunca se mostrou envergonhado na proclamação da sua lista de ódios: educação, tolerância, pluralismo, prazer e, acima de tudo, liberdade de expressão”. Este é o diagnóstico. As acções a tomar perante ele surgem depois  - no texto de McEwan e nos restantes que foram sendo publicados.

Entre os milhares de cartoonistas que, mundo fora, expressaram com a sua arte os sentimentos suscitados pelo assassinato dos seus colegas de profissão, destaca-se, pelo simbolismo, o nome de Uderzo, o desenhador de Astérix que, aos 87 anos, abandonou a sua reforma para criar dois cartoons, publicados no Le Figaro. “Como pôde alguém fazer algo tão chocante? Como podem pessoas que se dizem seres humanos assassinar gente que nunca conheceram mas que disse qualquer coisa de errado e, portanto, a partir desse momento, tem que ser morta? Isto é insanidade!”, declarou.

Um dos cartoons mostram Astérix e Obélix curvando-se em homenagem aos assassinados e depositando uma rosa no chão, enquanto Ideiafix nos lança um olhar triste. O outro cartoon é mais eloquente quanto aos seus sentimentos que as palavras ditas ao Le Figaro. Astérix dispara um soco que lança no ar o assassino (presuminos, obviamente) já fora de cena (apenas os pés sobrevivem no enquadramento). No balão, o grito: “Também eu sou um Charlie”.

O cartoon está a gerar alguma controvérsia, com o seu autor acusado de racismo por ter desenhado duas babuchas, sapatos tradicionais do norte de África, no homem esmurrado por Astérix. "O cartoon ilustra um sentimento anti-imigração latente na sociedade francesa", afirmou Massoud Hayoun, jornalista americano da Al-Jazeera. 

Unidade nacional não é "França para os franceses"

O filósofo e escritor francês Bernard-Henri Lévy acentua no New York Times a gravidade excepcional do ataque terrorista. "Estamos perante o momento churchilliano da V República”, declara. Classificando os cartoonistas do Charlie Hebdo como “correspondentes de guerra” (“agora sabemo-lo”), escreve: “É o momento de rompermos com os discursos apaziguadores que nos servem há tanto tempo os tontos úteis de um islamismo dissolvido na sociologia da miséria”.

O texto de Lévy tem o tom de um verdadeiro manifesto. “A França pode – e deve – erguer diques que não sejam os muros de fortaleza acossada”, escreve, antes de reclamar uma linha de acção distante da praticada pelos Estados Unidos dirigidos por George W. Bush no pós-11 de Setembro: “A França deve - e pode – pôr um prática um antiterrorismo sem poderes especiais, um patriotismo sem Patriot Act, uma forma de governar que não caia em nenhuma das armadilhas em que os Estados Unidos estiveram quase a perder-se depois do 11 de Setembro de 2001”. Exorta os cidadãos (“temos de vencer o medo e armarmo-nos contra a obsessão com o outro e a lei da suspeita generalizada”) e apela à “unidade nacional”, que aponta como precisamente o contrário do “França para os Franceses” tornado slogan pela Frente Nacional de Marine Le Pen: “A unidade nacional é a ideia que faz com que os franceses tenham compreendido que os assassinos de Charlie não são os muçulmanos, mas sim uma ínfima fracção dos muçulmanos, composta por quem confunde o Corão com um manual de torturas”. Bernard-Henri Lévy defende que não se deve exigir aos muçulmanos franceses que se justifiquem perante o atentado, mas estes devem ser incitados a “manifestar que se sentem irmãos dos seus concidadãos assassinados, erradicando dessa maneira, e de uma vez por todas, a mentira de que existe uma comunhão de espírito entre a sua fé e a dos autores da matança”.

Salman Rushdie, cáustico, escrevera que a “quando combinada com armamento moderno, a religião, uma forma medieval de insensatez, torna-se uma ameaça real às nossas liberdades”. Acrescentava que “respeito pela religião” se tornou uma expressão codificada para “’medo da religião’”. E concluía: “As religiões, como todas as outras ideias, merecem crítica, sátira, crítica e, sim, um desrespeito corajoso”.

Ian McEwan, que, naquela que considera uma “noite negra para a liberdade da mente”, vê alguns “frágeis raios de luz” nas multidões “serena e determinadas” reunidas em várias cidades francesas ou na esperança de que “o repúdio generalizado perante estes assassinatos possa ter um efeito unificador”, dirige-se depois aos que sintam tentados a ceder à retórica xenófoba da Frente Nacional. Escreve: “aqueles que pensem em incendiar uma mesquita devem considerar que a forma mais eficiente de oprimir ou assassinar muçulmanos será juntando-se ao Isis ou a uma das suas organizações associadas”.

Também Ian McEwan põe a tónica na liberdade de expressão. Depois de Charlie Hebdo o debate deve ser “reavivado”, afirma. “Infelizmente para o pensamento livre no Ocidente, a atitude do Islão mainstream perante a apostasia mantém-se nebulosa. Há uma conversa civilizada a fazer”, conclui.

A sátira e o riso que ela provoca, ofício a que se entregavam os cartoonistas do Charlie Hebdo, não são alvo de grande destaque em qualquer dos textos – apesar de o de Ian McEwan, por exemplo, ter por título “enfrentar o ódio com o riso”. No New York Review of Books o historiador Robert Dartnon, especializado na França do século XVIII, recorda como Voltaire tentou mobilizar os seus concidadãos contra as perseguições da Igreja Católica na antecâmara do Iluminismo escrevendo “temos que ter o riso do nosso lado”. Mas seria depois o mesmo Voltaire, no auge das perseguições, a constatar “este não é o tempo para risos”. Dartnon escreve que esta semana, o riso foi drenado de Paris. “Na próxima semana”, prossegue, “os quiosques estarão cheio de um ressuscitado Charlie Hebdo, mas é difícil perceber quando é que a comédia humana parecerá engraçada outra vez”.

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