Heranças e partilhas

Eu sou aquela prima afastada, aspirante a jornalista. Mas também me senti parte destas partilhas. Também me coube a herança da luta pela liberdade de expressão

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Charles Platiau/Reuters

De jornalista, quase nada nos ensinam na sala de aula. Ensinam-nos de jornalismo. "Leads" e pirâmides. Fontes e factos. Ética e deontologia. Cultural, político. Impresso, televisivo. Valores-notícia. Breve e infografia. Watergate e Wikileaks. Das máquinas de escrever aos computadores portáteis. Do papel à página web. Do bloco de notas aos drones. Ensinam-nos uns quantos verbos. Não nos ensinam a ser.

Já o éramos. Antes das aulas, dos livros e das sebentas na reprografia. Ou nunca o seremos. Começámos em miúdos. A idade era dos porquês, mas nós dobrávamos todas as perguntas. Na escola integrámos o jornal ou fundámos a rádio. Alguns escreviam poemas, outros romanceavam. Fomos os apresentadores oficiais!

Na universidade aborreceram-nos as teorias. Queríamos microfones, câmaras, gravadores, descontinuar o passo dos transeuntes.

Incomodam-nos os erros ortográficos. Os poucos livros. A falta de perguntas. Agrada-nos uma boa conversa. Encontrar o olhar no que poderá ser uma história. Vê-la no seu todo e por partes.

Pouco de morno, pouco de ameno. Quase nada de assim-assim ou de vai-se andando. O amor-ódio pelo último minuto e pela última hora. Pelo imprevisto.

Sempre o fomos, ainda que muitas vezes não nos deixem ser.

Os estágios em pele de emprego. O chega-me-isto nos estágios curriculares. O faz-tudo por uns trocos da profissão.

O jornalista continua a questionar. Mas o ano é 2015 e, logo, também fotografa, grava, filma. Edita, publica e partilha nas redes sociais. E 2015 é de crise, por isso, o jornalista também faz uma perninha no grafismo e nas vendas.

Entretanto, na redação, despedem uma memória e contratam dois a quem dão umas lembranças no final do mês. "Cem horas" é melhor do que "sem horas".

Calam-nos aqui e ali. Pedem para falarmos baixo, baixinho! Sempre o fomos, ainda que muitas vezes não nos deixem ser.

Agora, Paris. Não se calaram. Tão pouco falaram baixo. E, se palavras incomodam, gritos de liberdade incomodam muito mais.

A eles não os deixaram ser. Mas eles deixaram-nos a maior das heranças.

Eu sou aquela prima afastada, aspirante a jornalista. Mas também me senti parte destas partilhas. Também me coube a herança da luta pela liberdade de expressão.

Recebi um lápis por afiar. Melhor do que uma caneta sem tinta, que outros tanto teimam em oferecer!

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