Victor Gomes: As vidas de um Rei do Rock

Nos anos 1960 Victor Gomes corporizou como nenhum outro a rebeldia do rock’n’roll. Incendiário em palco, carismático no cinema, viveu uma vida com muitas vidas dentro. É o que nos conta a biografia Juntos Outra Vez

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Em 2015, Victor Gomes fará 75 anos: está a planear um concerto com vários músicos, da sua geração e posteriores e quer baptizá-lo O Último Palco
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Em 2015, Victor Gomes fará 75 anos: está a planear um concerto com vários músicos, da sua geração e posteriores e quer baptizá-lo O Último Palco
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Em 2015, Victor Gomes fará 75 anos: está a planear um concerto com vários músicos, da sua geração e posteriores e quer baptizá-lo O Último Palco

Há aquela cena, no salão de um palácio ocupado por juventude irrequieta vestida de cabedal, em que o líder da trupe se lança num salto desde a escadaria para acabar a balançar-se num grande candelabro. Nele se empoleira para cantar, para traduzir em movimento a rebeldia do ritmo rock’n’roll que representa a estética e a ética da malta que ocupou o palácio.

Há aquela outra cena, quando o líder, homem cheio de pinta, de poucas palavras mas de olhar e pose ora provocador, ora gozão, irrompe com os seus cúmplices por um clube frequentado por gente de bem e rouba o microfone à cantora certinha que cantava certinha o tango. Puxa daqui, empurra dali e rebenta uma memorável cena de pancadaria digna do salloon mais spaghetti ou da tasca mais bas-fond.

Tudo isto que relatamos tem lugar em A Canção da Saudade, filme estreado em 1964, realizado por Henrique Campos e, muito provavelmente, o mais próximo que existe na cinematografia portuguesa de um filme rock’n’roll. Sob o pano de fundo de um conflito geracional entre pai e filho, ambos músicos, surge um desfile de canções urbanas (o fado, o rock, a música ligeira) e um elenco de estrelas: Madalena Iglesias, Simone de Oliveira, Tony de Matos, interpretam-se a si mesmos; Florbela Queiroz é a atinada irmã do protagonista; Soledad Miranda, futura musa do realizador de culto Jess Franco, é a namorada daquele; e o jovem Nicolau Breyner um dos membros da trupe irrequieta. A estrela do filme, essa, chama-se Victor Gomes.

Victor atracara em Lisboa, vindo de Angola, um ano antes e, nesse curto período, tornara-se estrela cintilante do rock’n’roll português, aquele que, em palco, melhor dava corpo ao seu impulso rebelde (e fora dele, entre coristas, boites fumarentas e noitadas prolongadas, igualmente). Descobrira na Trafaria uma banda, os Gatos Negros, que o acompanhava em intensidade e atitude. Contratado pelo grande promotor Vasco Morgado, mostrara no lugar mais improvável – o teatro de revista no Parque Mayer -, como o rock’n’roll enquanto performance e movimento podia ser electrizante (fê-lo em 1963, quando Blue suede shoes ou Be bop a lula surgiram no guião de Boa Noite Lisboa, com Eugénio Salvador e Simone de Oliveira).

Vestido de preto integral, com casaco de cabedal, luvas pretas, corrente no bolso, pendente ao pescoço e a franja comprida caindo-lhe sobre o rosto, Victor Gomes foi, literalmente, o corpo e imagem do rock’n’roll em Portugal. Só podemos imaginar o que seria. Afinal, deixou como único registo discográfico um EP – e esse EP, Juntos outra vez, editado em 1968, mostra-o baladeiro, crooner modelado na soul à Tom Jones, com um som distante da imagem preservada de cantor infernizado.

Ou seja, para compreender Victor Gomes, o seu impacto e o seu estatuto no panteão do rock português, quem não o viu em concerto na década de 1960 tem as imagens de A Canção da Saudade ou o preto-e-branco de um vídeo no YouTube, resgatado a um programa da RTP dedicado aos “ritmos modernos”. Tem os relatos de época da imprensa e as distinções ganhas: o “Rei do Twist”, o “Rei do Rock”, o cantor que infernizou Lourenço Marques e que infernizou Luanda e arredores antes de atracar em Lisboa, onde nascera no Alto do Pina a 6 de Fevereiro de 1940 (e de onde saíra com a família rumo a Moçambique seis anos depois), para, com os sons do rock’n’roll na cabeça e inspirado pela visão de Marlon Brando, James Dean ou Elvis Presley no grande ecrã, infernizá-la também.

Agora, para o compreender e contextualizar, temos mais. Temos a história completa (e que história). O rocker que se revelou estrela numa revista no Parque Mayer, que foi também hoquista e futebolista, marinheiro nas águas do Pacífico, fazendeiro e caçador na savana africana ou soldador em França. Lemos tudo em Juntos Outra Vez, biografia bilingue, uma edição de autor assinada por Ondina Pires, cujo percurso na música a liga a nomes como Pop Dell’Arte, Ezra Pound & A Loucura ou Great Lesbian Show. “Se alguém algum dia quiser fazer um filme com a vida de Victor Gomes já tem aqui a papinha feita”, diz. Uma narrativa na "tradição do herói picaresco de mil aventuras que, em certos momentos, se sai bem, outras mal, mas que tem sempre um sentido de humor que o ajuda a combater as coisas ruins. A pessoa que se desembaraça, que improvisa, que luta, que sobrevive, que, se meter água, logo a seguir avança por outro caminho”.

Ondina explica-o no interior de um café na rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa, a do Coliseu dos Recreios, do Politeama ou da Casa do Alentejo. Victor Gomes está ao lado da sua biógrafa e este local, o combinado para a entrevista, fá-lo puxar pela memória. “Na altura havia bailes por todo o lado, até aqui ao lado. Era matinées aos sábados, era aos domingos. Tudo com bandas. Mas juventude, parecia que não havia nenhuma”, diz com um meio sorriso. O que ele quer dizer é que nos anos 1960 a juventude andava por aí nas ruas e nos bailes, mas parecia-lhe, como dizer, pouco jovem. Victor foi procurar essa juventude, encontrou essa juventude, representou a possibilidade dessa juventude existir no Portugal do Estado Novo. E é isso que nos conta Juntos Outra Vez, obra que vem preencher uma lacuna na documentação da história da cultura popular em Portugal.

Com o diabo no corpo

Quando Victor Gomes regressou a Lisboa vindo de Angola, em Abril de 1963, já tinha vida preenchida. Passara anos no Instituto Mouzinho de Albuquerque, na Namaacha, da qual fugira aos 15 anos para, sozinho, percorrer os mil quilómetros que o separavam de Lourenço Marques e do pai, entretanto divorciado da mãe. Construíra depois estatuto enquanto intérprete infernizado do rock’n’roll em Moçambique e em Angola e contava já com um invejável currículo de concertos nas duas ex-colónias. Formara-se na Rua Araújo da capital moçambicana, deambulando com um grupo de Teddy Boys pelos seus bares e cabarets, falando do rock’n’roll de Elvis, Little Richard ou Chuck Berry com os marinheiros americanos que por ali passavam e congeminando fugas mirabolantes até aos Estados Unidos – uma acabou na Cidade do Cabo, descoberto pela tripulação do navio em cujo porão se infiltrara com alguns amigos.

Entre os concursos e actuações musicais, casara e tivera duas filhas e um filho, este morto aos dois anos num trágico acidente. Jogara brevemente com Eusébio no Sporting de Lourenço Marques, jogara hóquei no Clube Sindicato e, em Nampula, metera-se mato dentro para ser caçador de animais de grande porte. Entre tudo isto, a música sempre presente.

Quando Victor Gomes regressa a Lisboa, continuemos, contava apenas 23 anos. Vinha com o objectivo de ter uma carreira. Pôs-se à procura. “Queria ver os conjuntos e ver os ambientes, sentir como era a vida artística em Portugal”. Percebeu rapidamente que a realidade era mais contida, mais polida e menos exuberante que aquela que conhecia de Angola e Moçambique. O rock português já nascera oficialmente, Daniel Bacelar e os Conchas já o haviam inaugurado discograficamente, em 1960, com o EP Os Caloiros da Canção, Joaquim Costa já era o Elvis de Campolide e já havia Zeca do Rock, Nelo do Twist ou os Titãs a assimilar e interpretar os novos ritmos anglo-saxónicos. Victor Gomes, porém, trouxe outra coisa.  “O Victor era um vulcão. Queria mostrar a uma metrópole cinzenta o que era o verdadeiro rock’n’roll. A grande diferença era a questão da performance. O Victor tinha o diabo no corpo e deixou o público atónito”, diz Ondina Pires.

A sua presença não deixava ninguém indiferente. Os jovens viam nele uma liberdade e uma loucura que admiravam, os conservadores viam nele um cabeludo incómodo que não conseguiam compreender. O relato de um concerto de Victor Gomes e os Gatos Negros em Tavira, incluído em Juntos Outra Vez, publicado no Jornal do Algarve a 22 de Agosto de 1964 e assinada por Sebastião Leiria é exemplar de um, digamos, fascínio ambíguo (ou escárnio fascinante). “Quando Victor entra de roldão, todo empenado e a berrar tanto que nem se sabe se tem a espinha partida, então é que são elas. […] Depois de Victor berrar os sete farrapos em várias posições, berra de cócoras muito irritado, não se sabe porquê. Os demais ‘Gatos’ também se põem de cócoras mas menos irritados. Depois arroja-se no chão – que arrojo! – os Gatos também. Tudo estendido a coçar a barriga. Então Victor põe o microfone de pés para o ar e revolea-se no sobrado, lembrando os besouros quando de barriga para cima se querem voltar. Os ‘Gatos’ também, mas estes apenas lembram carochas”. “Vocês não ‘tão entendendo nada”, como diria Caetano Veloso pouco depois em É proibido proibir - mas até entendiam, caso contrário Victor Gomes não seria convidado a partilhar palco com Amália no antigo Palácio dos Desporto, hoje Pavilhão Carlos Lopes, ou chamado a interpretar um soldado de Napoleão em fuga em A Caçada do Malhadeiro, de Quirino Simões. 

O último palco?

Victor Gomes é um homem elegante, com um corpo seco para os 74 anos que carrega. Recebeu-nos à mesa do café onde decorreu a entrevista de óculos escuros, com o casaco de cabedal vestido sobre a camisola de gola alta, igualmente preta. O “Rei do Rock” português da década de 1960 continua ali. Ouvimo-lo nas expressões com que pontua ou termina as frases – conta da aventura clandestina no cargueiro e termina-a com um “carry on, let’s go!”; fala de uma canção, de um concerto, de uma presença televisiva e lá se solta o “a one, a two, a one, two, three, four!” com que dava sinal de arranque às actuações.

As histórias sucedem-se, atropelam-se, saltam décadas e atravessam lugares (o cabaret Maxime de que foi músico residente algumas temporadas, “quando o Maxime era o Maxime”; a Rodésia, hoje Zimbabwe, onde viveu enquanto músico, primeiro, e, depois, fazendeiro; a Paris em que viveu com a filha, trabalhando como soldador – “e até gostava e era um bom soldador”). Surgem-lhe onomatopeias com sons de guitarra eléctrica, soltam-se gargalhadas como “punchline” contagiante e ele ri como se o que acaba de contar fosse memória fresca de há um par de dias.

Victor Gomes tem orgulho na vida que levou e no que fez dela. Quando, em meados da década de 1960, já estrela dos palcos e do cinema, começa a ser abordado para assinar um contrato discográfico, recusa uma e outra vez. Queriam que cantasse em português e ele só aceitava o inglês. “Não era como eles queriam, era como eu queria. À minha maneira. Fiz bem? Fiz mal?” Não dá resposta. Fez – é toda a resposta necessária.

À sua maneira, saiu-lhe de chofre a letra de Juntos outra vez à mesa de um café em Portimão, eram três da manhã depois de mais um concerto, e foi-se a intransigência com o inglês. À sua maneira, saiu de Lisboa em Dezembro de 1967 para ir tocar para as tropas portuguesas envolvidas na Guerra Colonial e o que deveria ser uma estadia de três meses transformou-se em 18 anos de vida passados entre Moçambique, África do Sul ou a antiga Rodésia.

Em 1992, regressou definitivamente a Portugal. Tocou nos casinos e em clubes, ressuscitou os Gatos Negros e organizou concertos com os músicos e bandas da sua geração. Aos poucos, as gerações seguintes foram também redescobrindo esse passado misterioso e envolto em neblina que é o do rock português da década de 1960. Houve reedições discográficas que deram som ao período e surgiu bibliografia a fornecer o contexto histórico. Victor Gomes voltava a estar presente: com o seu rosto suado em grande plano em fotografia icónica, com o relato dos seus movimentos felinos em palco, com uma aura de mistério que contribui para a mitificação.

Em 2007, os WrayGunn convocam-no para ser mestre-de-cerimónias da banda no vídeo de She’s a go go dancer. Em 2012, Afonso Cortez e Bernardo Rão chamam-no para integrar o elenco do filme independente Calor e Moscas.

Agora, podemos conhecer a história toda e perceber como cabem várias vidas lá dentro. “Para terminar”, despede-se, “quero dizer que estou a cantar bem, que a voz está boa. E eu quero cantar enquanto a voz estiver boa, não até que a voz me doa”. Em 2015, Victor Gomes fará 75 anos. Está a planear um concerto com vários músicos, da sua geração e posteriores. Quer baptizá-lo “O Último Palco”.

“Conhecia desde miúda o nome de Victor Gomes e dos Gatos Negros”, dizia-nos Ondina Pires no início da conversa. “Era lendário, sempre foi lendário”. Temos a biografia, temos a imagem. Quase conseguimos ouvir a música, quase vemos os concertos. Lendário continuará a ser. 

 

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