Maria de Lourdes Modesto acusa editora Alêtheia de abusar do seu nome

Um livro, publicado em 1995, com receitas da obra Eça de Queiroz criadas por Modesto, foi agora reeditado. A autora não se reconhece nesta edição e não autoriza que o seu nome seja usado.

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Maria de Lourdes Modesto nega ter recebido quaisquer provas ou o convite para o lançamento Miguel Manso

Trata-se de um “livro-pirata”, diz Maria de Lourdes Modesto, referindo-se a Comer e Beber com Eça de Queirós, obra que acaba de ser reeditada pela Alêtheia. Zita Seabra, a editora, reage afirmando que não há problema nenhum, dado que os direitos do livro pertencem à Fundação Eça de Queiroz, e garantindo que Maria de Lourdes Modesto foi informada de todo o processo.

A história é complicada e põe em confronto duas versões diferentes do que aconteceu. Modesto contou ao PÚBLICO que o livro foi editado inicialmente em 1995. “Pediram-me para fazer para a Fundação Eça de Queiroz as receitas que o Eça refere nos seus livros”, explica. O objectivo era publicar uma obra que juntasse um texto mais académico sobre o tema – que foi escrito pela professora brasileira Beatriz Berrini, especialista no escritor português – e as receitas, que Maria de Lourdes Modesto aceitou recriar.

“Não foi fácil, mas consegui fazer umas 50 receitas”, recorda. Os pratos citados nos vários livros de Eça – como o célebre arroz de favas que em A Cidade e as Serras maravilha Jacinto “que, em Paris, sempre abominara favas!” – não são, naturalmente, apresentados como receitas nos textos de Eça, pelo que foi necessário pesquisar e testar para os fazer. “Fez-se um livro de grande luxo, com capa de seda natural”, conta a especialista na gastronomia tradicional portuguesa, e, através de um contacto no Brasil, conseguiu-se que o livro fosse feito pela editora Index, do Rio de Janeiro, “com o patrocínio do banco brasileiro Itaú”.

A autora das receitas recorda ainda que houve um lançamento “de estadão, no Palácio de São Clemente, no Rio”, e uma cerimónia bastante mais discreta em Lisboa, no Grémio Literário. O livro foi colocado à venda com um preço elevado mas, segundo Modesto, era uma edição “muito bonita”, com um trabalho fotográfico cuidado. As referências que se encontram a essa edição indicam que, para além de Beatriz Berrini e das receitas de Maria de Lourdes Modesto, ela incluía “selecção e comentário dos vinhos por Vasco Costa Cabral” e “decoração das mesas por Malu Futscher Pereira e José Vaz Guedes”.

Maria de Lourdes Modesto confirma que na altura abdicou dos direitos de autor porque se tratava de uma obra feita para “ajudar a Fundação a recolher fundos” através da venda dos livros (tanto ela como Beatriz Berrini receberam apenas um pagamento simbólico). E diz que no seu contrato ficou escrito que os direitos pertenciam à Fundação e à editora Index. Zita Seabra afirma, por seu lado, que os direitos “foram cedidos pelos autores à Fundação”, e que foi com esta que a Alêtheia assinou o contrato para a reedição do livro.

“Não seríamos sequer obrigados a contactar Maria de Lourdes Modesto, mas por delicadeza decidimos fazê-lo, e mantivemo-la a par de todo o processo”, diz a editora. E é aqui que as versões divergem totalmente. A autora das receitas conta que foi contactada por uma pessoa que lhe perguntou se “as receitas do livro poderiam ser usadas pelos restaurantes de Baião”, onde fica a Fundação (as “ementas queirosianas”, entre as quais o famoso arroz de favas, mas também o cozido à portuguesa com arroz de forno citado em Os Maias, e várias outras, são actualmente servidas no restaurante da Fundação, em Tormes). “Eu respondi que sim, claro, se as receitas estão publicadas não posso impedir ninguém de usá-las, e disse até que tinha muito gosto nisso”.

Mas, assegura Modesto, “nunca houve uma palavra em relação à Alêtheia”, mesmo quando noutro contacto telefónico lhe foi dito que iriam “fazer um caderno com as receitas que os restaurantes tinham feito”. Na versão de Zita Seabra, a autora “foi informada, tanto pela editora como pela Fundação, de que iriamos publicar o livro, e inclusivamente mandámos-lhe as provas, e até a convidámos para a apresentação que fizemos, convite que ela recusou dizendo que estava demasiado frio para ir”.

O único pedido que Modesto fez, segundo Zita Seabra, foi para que ficasse claro no livro que as fotografias não tinham sido feitas a partir de pratos cozinhados por ela ou sob a sua supervisão. “Achámos que fazia todo o sentido, e concordámos”, afirma a editora, sublinhando contudo que “essa foi a única objecção levantada pela autora”.

Maria de Lourdes Modesto nega ter recebido quaisquer provas ou o convite para o lançamento. Quando recebeu o livro em casa achou “que lhe tinham dado uma volta e que deixara de o reconhecer”. O que a indigna é que tenham utilizado o mesmo título, Comer e Beber com Eça de Queiroz, e “que tenham posto na capa, como autoras, a Beatriz Berrini e eu”. E reforça: “A questão é não me terem dado conhecimento de que o trabalho estava entregue a uma editora. Não há nenhum papel assinado por mim, e considero que abusaram do meu nome”.

Enviou já uma carta registada à editora, e em contacto telefónico com a Fundação esclareceu que “os textos foram cedidos para um determinado livro, e a edição agora feita e publicada é completamente diferente daquela em que trabalhei”. E acrescenta: “A Fundação não está autorizada a pôr o meu nome na capa de um livro cuja editora não é a minha e no qual não intervim”.

A Fundação, por seu lado, confirma a versão de Zita Seabra. “Contactámos Maria de Lourdes Modesto dando-lhe conta de que íamos fazer uma nova edição e ela manifestou concordância”, diz a directora executiva, Anabela Cardoso. “As receitas e os textos mantêm-se os mesmos, a única coisa nova são as fotografias.” Anabela Cardoso garante também que “todos os direitos foram cedidos à Fundação” e que a editora brasileira de 1995, a Index, não tem quaisquer direitos sobre a obra. O PÚBLICO contactou a Index (pertencente ao Grupo Editorial Record), que respondeu por email que “a obra não pertence ao [seu] catálogo de publicações”.

Manuel Lopes Rocha, advogado especializado em direitos de autor, explicou ao PÚBLICO que num caso como este é preciso perceber em que termos exactos foi feito o contrato inicial, se a autora cedeu ou não os direitos patrimoniais à Fundação, e ainda “se os cedeu num determinado contexto e só para aquela edição”. De qualquer forma, acrescenta o especialista, Maria de Lourdes Modesto “tem sempre um direito moral, e pode entender que a obra que foi agora editada não corresponde ao que ela pretendia inicialmente”.

Este é um caso muito específico porque “receitas não são protegidas por direitos de autor a não ser quando se distinguem por um estilo literário particular”, salienta Manuel Lopes Rocha, recordando contudo que já há casos de grandes chefs que estão a patentear técnicas usadas nas suas criações. No entanto, aqui a questão é outra: “Se a autora não se reconhecer na obra, pode invocar o direito ao seu nome de autor e dizer ‘esta obra não é minha’”. É precisamente isso que Maria de Lourdes Modesto pretende fazer: “Quero que me peçam desculpa, que retirem o livro e que não o voltem a editar”. 

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